Na ficha da consulta constava: professor de Filosofia. Ele entrou no consultório com uma sacola de exames que mantinha constrita contra o peito. Quando perguntei no que podia lhe ajudar, titubeou como se a pergunta fosse a mais inesperada, depois contraiu os lábios, segurou o pacote com as duas mãos e me estendeu: "Aqui está o meu destino e, pelo que me deram a entender, a coisa está preta!".
Era o quarto médico que consultava, e todos tinham sido intencionalmente evasivos depois de olhar os exames. Ninguém se animara a contar a verdade que, assim, fatiada em informações escorregadias, acabara por se revelar inteira, cruel e assustadora. Antes de desatar num choro convulsivo, ainda conseguiu dizer: "Acho que o caranguejo me pegou".
Fiquei com pena daquele homem culto, franzino, envelhecido e solitário, e passei para o outro lado da mesa, diminuindo a distância que nos separava. Olhamos as tomografias juntos, apontei onde estava a lesão e, sem me deter em detalhes técnicos, todos desfavoráveis, expliquei por onde iríamos começar a tratá-lo. Dito isso, fui surpreendido por um sorriso que iluminou a cara molhada, e ele comemorou: "Mas, então, eu tenho tratamento?".
Nessa frase, toda a certeza de que o grande pavor do paciente grave é a ideia de que diagnóstico desfavorável seja sinônimo de abandono e solidão. Como a sua consulta era a última do dia, pude alongar a conversa e, quando o acompanhei à porta, arrisquei animá-lo com uma mistura desigual de desejo e esperança: "Temos uma longa briga pela frente, mas, se pensou em morrer, se prepare para uma grande decepção, porque eu acho que esse tumor não sabe com quem se meteu!". Então, ganhei um abraço demorado e um presente: "E pode ficar com este calhamaço. Eu não vou mais precisar dele, porque agora eu encontrei o meu médico!".
Foram meses sofridos, mas ele nunca mais se queixou de nada. Estava sempre animado com qualquer terapia que lhe fosse proposta, por mais que parecesse meramente paliativa. Sabiamente, passou a evitar as perguntas que ele intuía respostas pessimistas. Ficamos amigos e ávidos por amenidades que dessem um tempo no inevitável, compartilhamos paixão por Cortázar, Gabo, Puccini, Saramago, Joe Cocker, Gonzaguinha, Paulinho da Viola e Elis. Foi bom encontrar alguém que concordava que A Marca Humana foi a melhor coisa que Philip Roth escreveu.
Morreu numa antevéspera de Natal, cuidado pela esposa carinhosa e por um filho que várias vezes advertiu que todo o atendimento teria de ser pelo convênio, porque ele não teria como me pagar.
Não sabia ele que, dias antes, seu pai me fizera um comentário que plano de saúde não paga: "Agora que estamos chegando ao fim, preciso te dizer que o melhor tratamento que recebi foi quando você sentou ao meu lado, lá na primeira consulta".
Uma semana antes da morte, ele surpreendeu a mulher, que o sabia ateu, pedindo para conversar com o pastor que antes se negara receber, apesar da insistência do religioso em confortá-lo. Soube, tempos depois, que ele queria apenas confessar uma descoberta: seguia descrente, mas tendo sido cuidado por pessoas carinhosas, ele ficara com a sensação de que a generosidade podia ser uma imagem adequada para esse tal de Deus.
E, nessa, ele estava disposto a acreditar.