Primeiro foi uma pequena dificuldade para caminhar. A suspeita era de que o novo sapato estava machucando o pé de Gabriel Campos, então com três anos.
A seguir, apareceram algumas manchas roxas nas pernas, e a ideia de que ele estava agitado demais na escolinha. Como o menino não se queixava de dor, a mãe, Juliane, 35 anos, contentou-se com duas visitas à emergência do hospital. Os médicos, por exames simples, como raio X, indicaram que Gabriel não tinha "nada grave". Deveria ser o sapato mesmo. Foi comprado, então, um novo par de tênis para o menino, mas o problema não estava resolvido.
A real causa dos sintomas foi descoberta poucos dias depois, quando, por destino, como diz a mãe, Gabriel e o pai, Guilherme, 50 anos, tinham uma consulta marcada com a pediatra da família:
- Quando o levei na consulta, ele estava já um pouco pálido. A médica teve uma desconfiança e pediu alguns exames de sangue. Uma semana depois, saiu o resultado: Gabriel tinha leucemia. O susto foi grande.
Uma vez detectado o câncer, que afeta os glóbulos brancos do sangue, Gabriel ficou 45 dias internado. Apesar do desespero inicial, mãe, pai e filho ficaram mais tranquilos ao saber que a doença havia sido identificada em um estágio inicial. Isso garantiu um tratamento menos agressivo e uma maior chance de cura. Ainda que seja considerada uma doença rara - o câncer infantil representa 3% dos cânceres diagnosticados -, a importância do diagnóstico precoce tem sido cada vez maior, pois em países desenvolvidos trata-se da primeira causa de morte por doença na infância, explica a médica Mariana Bohns Michalowski, chefe do Serviço de Oncologia e Hematologia Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio.
Peculiaridades que ajudam a perceber o problema na criança
Assim como Gabriel, cerca de 9 mil crianças são detectadas com câncer anualmente no Brasil, aponta o Instituto Nacional do Câncer (Inca). Os três tipos mais comuns são a leucemia (doença maligna dos glóbulos brancos), os linfomas (que se originam nos gânglios) e os tumores do sistema nervoso central.
Mesmo que apresente semelhanças com a forma que acomete os adultos, a doença, nas crianças, tem peculiaridades que devem ser reconhecidas por pais e médicos. Mariana explica que, na fase adulta, em muitas situações, o surgimento da enfermidade está associado claramente a fatores externos como, por exemplo, fumo, excesso de sol e álcool. Nos pequenos, influências ambientais desempenham um papel bem menor no desenvolvimento da doença, o que torna a prevenção um grande desafio.
Para a hematologista pediátrica Liane Esteves Daudt, chefe do serviço de Hematologia Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a detecção precoce do câncer reduz consideravelmente as complicações agudas e tardias do tratamento, pois permite que a terapia seja menos agressiva.
- Além disso, o câncer infantil tende a crescer quase sempre rapidamente. Quanto antes for detectado, maior porcentagem de cura.
Aumento da taxa de cura
A importância de identificar o câncer infantil no início é tamanha que a Unidade de Oncologia Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio, onde Gabriel foi tratado, trabalha com foco específico no diagnóstico precoce, para aumentar as chances de cura. Entre as ações, a instituição desenvolve campanhas educacionais para conscientizar familiares e demais profissionais da saúde.
- Não existem medidas efetivas de prevenção primária para impedir o desenvolvimento do câncer na faixa etária pediátrica. Como não podemos agir neste ponto, a prevenção secundária, ou seja, o diagnóstico precoce, torna-se essencial - ressalta Mariana.
Por isso, a especialista aponta para a necessidade de pais e médicos ficarem atentos aos sinais que podem indicar a presença da doença (veja abaixo).
- Em determinados tipos de câncer infantil, como os do sistema nervoso central e nos linfomas, o diagnóstico precoce é muito importante tanto no prognóstico quanto em relação ao tipo de tratamento e risco de sequelas. Nestes tipos de doença, as taxas de cura mais do que dobram se a doença é inicial - diz.
Ainda que tenha passado por dois anos de quimioterapia, Gabriel, hoje com cinco anos, exibe uma aparência saudável, reflexo do sucesso no seu tratamento. Ele ainda toma remédios diariamente e possui restrições mas, se tudo seguir dando certo, logo irá poder voltar a ter uma rotina normal.
- Tivemos muita sorte de detectar a doença logo no início. Isso fez com que o tratamento fosse mais tranquilo e, não à toa, ele está melhorando cada dia mais. É preciso sempre estar atento aos sinais e não ignorá-los - recomenda a mãe, Juliane.
A quem atinge
- O câncer infantil afeta cerca de 9 mil crianças no Brasil
- Ele já representa a segunda causa de mortalidade entre crianças e adolescentes de um a 19 anos
- Estima-se que em torno de 70% das crianças acometidas de câncer podem ser curadas se diagnosticadas precocemente e tratadas em centros especializados
Para ficar de olho
Sintomas frequentes da enfermidade:
- Febre persistente, prolongada (várias semanas), sem origem determinada, ou seja, não associada a quadro de infecção, resfriado, ou outro sintoma
- Perdas de mais de 10% do peso em três meses
- Palidez intensa e cansaço como manifestação de anemia ou por sangramento
- Sangramentos anormais. Além disso, crianças costumam ter hematomas (manchas roxas) em locais de impacto, como nas canelas ou braços, e manchas roxas em locais menos frequentes, como peito e costas, sem histórico de batida, ou sangramentos espontâneos de gengiva nas fezes ou urina devem chamar a atenção
- Ínguas grandes ou gânglios linfáticos aumentados são frequentes na infância e, em geral, associadas a processos infecciosos. Mas são suspeitos quando os gânglios apresentam espessura maior de 3 centímetros e ficam endurecidos, sem evidência de infecção na região
- Aumento anormal e assimétrico de qualquer região (tórax ou abdome) ou membro
- Dor de cabeça persistente ou associada a sintomas como vômitos ou qualquer alteração neurológica
- Mancha branca nos olhos, perda recente de visão, estrabismo, protrusão do globo
- Dores em ossos, juntas, nas costas e fraturas sem trauma proporcional
- Sinais neurológicos de alteração da marcha, desequilíbrio, alteração da fala, perda de habilidades desenvolvidas, aumento do perímetro cefálico
Preste atenção
Na presença de um desses sintomas, os pais devem procurar o pediatra, que julgará a necessidade ou não de realizar exames e encaminhar a um serviço de referência para melhor avaliação ou realização de testes complementares.