Julia tem nove anos, Ana Clara, 12, Thais, 16. A primeira gosta de ginástica rítmica, a segunda prefere saques e cortadas no vôlei, e a terceira é viciada em salto em altura. Se as três gauchinhas se diferenciam nas modalidades, elas convergem no fato de integrarem equipes competitivas e levam do esporte muito mais do que títulos: apesar da pouca idade, têm autonomia e maturidade de quem é preparada para representar e carregar o nome do clube, da cidade, e quem sabe, até do país, a mares mais distantes.
Filha caçula do baixista da banda Cidadão Quem Luciano Leindecker, Julia Leindecker tem nove anos e treina ginástica desde os três. Começou na modalidade artística, até ser chamada pelas treinadoras para integrar a equipe pré-infantil de ginastica rítmica. Sua irmã, Bela, também era adepta do esporte, mas teve de deixá-lo para focar a carreira musical na banda Dis Moi.
Depois do colégio, todas as tardes de Julia - exceto sexta-feira e fim de semana - são dedicadas aos treinos. Em pelo menos quatro horas de exercício, ela treina corrida, flexibilidade e força, sem falar no balé e nos saltos e acrobacias usando a bola e a corda.
Atualmente na 4ª série do Ensino Fundamental, Julia diz que não liga de ter de faltar a encontros na casa das amigas ou abrir mão de comer sorvete e tomar refrigerante, como qualquer criança de sua idade. Entende que tudo isso faz parte de algo maior: sua vontade de vencer. Pela postura com que se senta na cadeira e encara os sacrifícios, a pequena ginasta demonstra a atenção que dá a cada detalhe de sua trajetória.
Por não ter uma infância exatamente normal, acaba aprendendo coisas diferentes ou que só viriam mais tarde. Falar russo é uma delas. Foram poucas palavras, mas quando participou de uma oficina com uma bailarina russa, acabou aprendendo palavras como olá e obrigada.
No próximo fim de semana, a caçula de Luciano passará quatro dias sozinha em Caxias para uma competição. Campeã gaúcha invicta em sua categoria, ela está ansiosa com a viagem. Não por acaso: vai mostrar seu talento e tem a chance de voltar com mais uma medalha.
Treinadora de Julia e responsável pela ginástica do União, a russa Anna Danielyan define como guerreira a menina de sua equipe:
- Ela aguenta dor, não reclama, tem esse brilho nos olhos e sede por conhecimento.
Treino até debaixo da chuva
Com 13 anos, a jogadora de vôlei Ana Clara Medina conhece de perto os sacrifícios e abnegações trazidas pelo esporte. Recentemente, mudou-se da cidade de Sarandi, no Interior, onde morava com os pais, por causa de uma vaga que conseguiu na equipe de vôlei mirim da Sogipa, em Porto Alegre. A altura é um detalhe que lhe favorece o desempenho: 1m75cm. Entre judô e balé, acabou ficando com a bola, e é adepta da modalidade desde os cinco anos. Foi jogando pelo município em campeonatos estaduais que começou a colecionar medalhas.
Hoje, joga também pelo Colégio Pastor Dohms, onde ganhou uma bolsa de estudos, por indicação de um professor. Pela felicidade da filha, a mãe, Natália Medina, deixou o emprego e se mudou para a Capital, onde conseguiu novo trabalho. Segundo ela, tamanha determinação merecia incentivo e esforço:
- A Ana Clara ia treinar sempre. Quando chovia ou se estava muito cansada, eu dizia: não precisa ir, filha. Ela ia mesmo assim.
Em relação ao estudo, a jogadora conta que precisa dedicação extra para recuperar conteúdos perdidos durante suas viagens. Isso não é desculpa para ela se desorganizar: dá sempre um jeito de dividir bem sua agenda entre os treinos no colégio, no clube, as consultas com a nutricionista, as aulas, o estudo. Sobra tempo ainda para ir a algumas festas de amigos, "mas só em casa", garante. Festa de balada, com bebida, Ana diz que nunca participou.
- Quero jogar o resto da minha vida - diz a jogadora, que já decidiu que, quando acabar o colégio, irá mirar o curso de Educação Física.
Paixão que vem de casa
Que a equipe técnica costuma virar a segunda família do atleta, todo mundo sabe. No caso de Thaís Lindemayer, 16 anos, a figura do pai e do treinador se mistura em uma só pessoa. Criada em um ambiente que respira atletismo, o fruto não poderia cair longe do pé: a jovem, que tem pais e mãe treinadores, ganhou pódio em todas as nove competições nacionais de salto com vara que participou até hoje. Envolvida com esporte desde que se conhece por gente, Thaís diz que costumava passar as tardes no clube brincando, e foi assim que tudo começou. Em certa época, recorda que fazia basquete, atletismo, patinação e ginástica ao mesmo tempo. Com o passar do tempo, foi definido a paixão pelos saltos e, então, focou sua carreira. Sua melhor marca é de 3m52cm, com uma vara de 4m. A chateação por não poder comer sorvete e bolo - suas guloseimas preferidas -, supera com a autonomia de quem sabe onde quer chegar.
- Treino porque gosto e essa é a maior recompensa - diz.
Atualmente no 2º ano do Ensino Médio, Thaís percebe que sua organização é um dos principais legados do esporte, em relação às amigas e às colegas não atletas. Com refeitório, academia e uma equipe de fisioterapeuta e psicólogo a sua disposição, ela admite que batalha por uma carreira consistente no atletismo. Sabe, no entanto, que para isso ocorrer, precisa de foco, e não pode abandonar os estudos. É que além de ser um treinador rigoroso, Jose Haroldo Loureiro Gomes, o Arataca, técnico da equipe de atletismo da Sogipa, é exigente nesse sentido. Ele conta que só da liberdade e permite treinos se ela vai se sair bem no colégio. As vantagens dos limites, diz, serão revertidas para a própria filha.
- No esporte individual, cada um é responsável pelas próprias conquistas. É como na vida. O poder da renúncia é equivalente ao da vitória - completa.
Decisões entre estudo e carreira profissional
Organização, disciplina e senso de responsabilidade são heranças positivas deixadas pela participação em campeonatos e torneios. É preciso evitar, porém, que a cobrança excessiva dos técnicos e dos próprios pais, somadas a eventuais frustrações, não transformem o amor ao esporte em aversão.
Professor da disciplina de pedagogia do esporte na Faculdade de Educação Física (Esef) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carlos Adelar Abaide Balbinotti explica que, se praticado desde a infância, o esporte de alto rendimento implica aprendizados de aproximação, cooperação e diálogo, pela "valorização das condições de equidade, solidariedade, além de esforço e mérito".
Segundo ele, ser um atleta mirim depende de capacidades cognitivo-motoras, biológicas e psicossociais. Mas sem o apoio familiar, diz o professor, o projeto de formação de um atleta de alto nível tende ao fracasso.
Outro fator que costuma afastar atletas do esporte é o conflito entre estudos e treinamentos. No Brasil, é comum que o atleta de Ensino Médio concluído tenha de optar entre a carreira acadêmica e a profissional esportiva. Nos EUA, esse dilema foi administrado de forma que o esporte universitário continue sendo um caminho para o esporte profissional.
- No modelo brasileiro de formação do atleta, não há políticas públicas ou privadas preocupadas com esse jovem atleta promissor. Portanto, trata-se de uma decisão pessoal, de risco, do atleta com sua família - explica Balbinotti.
Mestrando na Esef e ex-atleta de triatlo, Rodrigo Rosa explica que o esporte o ajudou a trazer comprometimento nas escolhas. Quando estava na faixa dos 18 anos e via seus colegas saindo para se divertir, ficava em casa. Em relação aos estudos, diz que largar o esporte não é garantia de passar no vestibular. Segundo ele, a disciplina adquirida ajuda na hora dos estudos:
- Talvez a carga do treinamento tenha de ser diminuída para que o adolescente não se sinta pressionado. O clube é muito responsável por esta parte também, pois ele deve cuidar da integridade do seu atleta, seja ele criança ou não.
Cesar Cielo deu muitas braçadas até se tornar o atleta que é hoje. Com as medalhas e recordes em competições internacionais, aos 26 anos é um dos nadadores mais rápidos do mundo e, por isso, referência para muitos brasileiros. Na entrevista a seguir, fala dos desafios enfrentados na infância, da dificuldade de manter a rotina de treinos e alimentação, e conta que precisou de "muita raça" para driblar a carga pesada de estudos e competições. Ele fala também do projeto Novos Cielos, criado para passar adiante os aprendizados que vão além das medalhas.
>> Confira a entrevista feita com o nadador Cesar Cielo, que treina desde os sete anos
Vida - Que sacrifícios da infância como atleta foram marcantes para ti?
Cesar Cielo - Tinha uma época em que a alimentação era bem difícil. Ela não tinha de ser tão regrada como é hoje, porque criança tem alguma flexibilidade, mas não podia ser relaxada. Tinha horários muito rigorosos, mas, às vezes, eu não sentia fome na hora que tinha de comer, e depois não podia comer fora dos horários por causa dos treinos. Principalmente dos 12 para os 13 anos, no momento em que o moleque tem aquele "estirão", foi difícil encaixar a alimentação. Mais novo, o difícil era o comprometimento com o horário. Para criança é complicado manter rotina.
Vida - Além das medalhas, quais os maiores aprendizados que o esporte te trouxe?
Cielo - Acho que aprendi mais nas derrotas do que nas vitórias. Consegui trazer experiências e aprendizados para toda a vida. Você tem de estudar e trabalhar, aprende a ser disciplinado. Esse é o maior ganho que o esporte traz.
Vida - Com o projeto Novos Cielos, a ideia é passar adiante esses ensinamentos?
Cielo - Na minha cabeça, eu e minha família estamos devolvendo um pouco de tudo que a natação me deu para a comunidade aquática. Quero dar uma oportunidade para esses garotos. Não sei se vão ser campeões olímpicos. Pode ser que consigam uma bolsa de estudos em uma universidade do Brasil ou de fora. Só sei que estou tentando dar uma boa oportunidade para eles.
Vida - Você sempre contou com apoio familiar nas competições?
Cielo - Sim, meu pai (Cesar), minha mãe (Flávia) e minha irmã (Fernanda) sempre estiveram por perto. Acho que você ter a família junto te dá muita segurança. Família é família, é com eles que sempre pude contar nos momento bons ou ruins. São as pessoas que, com toda a certeza, eu sei, vão estar sempre do meu lado.
Vida - E na escola ou na faculdade, como fazia para conciliar a alta carga de treinos com os estudos?
Cielo - Muito na raça. Alguns períodos do ano ou alguns dias em que tinha de treinar duro e tinha trabalho para entregar ou prova, era muito difícil. Saía tão cansado da piscina que tinha de ler a mesma linha várias vezes para entender o que estava escrito. Independentemente de estar no Brasil ou nos Estados Unidos, onde a flexibilidade é maior, as cargas são muito parecidas (e pesadas). Você tem de ter muita vontade e saber que terá que abrir mão da vida pessoal por determinado período de tempo. É como ter dois empregos de tempo integral.
Thaís Lindemayer batalha por uma carreira consistente no atletismo sobre os olhos atentos do pai (Foto: FÉLIX ZUCCO/AGÊNCIA RBS)
Aos sete anos, Cielo já competia em Santa Bárbara do Oeste, interior de São Paulo