*J.J. Camargo é cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia e presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM)
A margem entre a genialidade fascinante e a loucura produtiva é reconhecidamente muito estreita, e alguns tipos muito interessantes transitam nesta faixa com uma naturalidade absolutamente sedutora.
O professor Britto Velho era um desses exemplares raros, de luminosa inteligência e lampejos desconcertantes. Por um desses acasos do destino, tive o privilégio, quando estudante de Medicina, de morar no mesmo edifício dele, e conquistar sua amizade, um trunfo impagável da minha juventude. Um dia de inverno, sentados ao sol, na pracinha defronte ao Pavilhão Pereira Filho, do nada ele perguntou:
- Tu achas que eu sou louco?
Apanhado de surpresa, tergiversei:
- Eu acho que o senhor é muito inteligente.
De nada adiantou:
- Isso todo mundo já sabe. O que eu quero saber é se tu achas que eu sou louco.
Não consegui evitar:
- Acho, mas não muito.
Foi o que bastou para que anunciasse que seríamos amigos, porque, na opinião dele, todo mundo precisa de parceiros capazes de fazer esse tipo de confissão.
E então ele contou que, um dia, na Câmara Federal, dissera ao senador Adauto Lúcio Cardoso, por quem tinha grande admiração, que estava pensando em fazer psicanálise porque achava que estava ficando meio louco. E o senador teria dito: "Britto, não contes isso pra ninguém. Tu vais chocar as pessoas, porque estão todos convencidos que és completamente louco, e assumir esse meio termo só servirá para deprimi-las!"
Ponto para o senador, que a partir daí passou ao rol dos indispensáveis.
Uma tarde saímos a caminhar em torno do quarteirão da universidade, onde ele invariavelmente contava deliciosas histórias do professor Sarmento Leite, um tipo que aprendi a idolatrar sem conhecer. Enquanto andávamos, ele disse que precisava discutir umas coisas comigo, porque achava que eu era inteligente, talvez mais do que ele tinha sido na minha idade. Certamente deslumbrado com o elogio passei a concordar com uma estapafúrdia teoria sobre os efeitos do divórcio na sociedade contemporânea. Quando contornamos o prédio do Salão de Atos, ele se confessou decepcionado.
- Não consigo conversar com uma pessoa que só concorda comigo! Vou pra casa. Talvez amanhã estejas mais inspirado. Boa tarde!
Convencido que o politicamente correto servia apenas como um escudo aos medíocres, ele abusou da condição de gênio para ensinar que a previsibilidade é a marca modesta das pessoas comuns que é, no fundo, o que somos.
Saudade da certeza do inusitado que ele simbolizava.
Enquanto isso na academia
>> J. J. Camargo é presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM) e uma vez por mês apresenta, neste espaço, o resumo das reuniões da entidade.
>> Na sessão de agosto, a ASRM reverenciou a memória de Rubens Garcia Maciel, um grande protagonista da medicina brasileira do século 20, cujo centenário de nascimento foi comemorado em 4 de agosto. O acadêmico Carlos Antonio Gottschall, um de seus discípulos mais próximos, proferiu a brilhante conferência O Centenário de um Ícone.
>> De inteligência invulgar, Rubens Maciel nasceu em Santana do Livramento em 1913, e graduou-se em Medicina em 1937. Desde cedo, revelou o dom pela oratória que marcou sua trajetória de líder estudantil, professor universitário, pesquisador e orientador de alguns dos médicos mais brilhantes do nosso Estado.
>> Aos 33 anos, alcançou a condição de professor catedrático. Fez da educação médica o norte de sua vida e revolucionou o ensino na Faculdade de Medicina de Porto Alegre ao reconhecer e explicar que o ensino médico deve obedecer a princípios pedagógicos científicos, em vez de recursos a "olho clínico", ou a empíricas inspirações individuais.
>> Fundador da lendária Enfermaria 29 da Santa Casa, em 1948, criou o maior celeiro médico do Rio Grande do Sul e um dos maiores do Brasil. Lá houve pioneirismo em angiocardiografia e em pós-graduação stricto sensu no Brasil, em residência médica e do atendimento em tempo integral. A partir daquele embrião estruturaram-se o Instituto de Cardiologia do RS, os serviços de Pneumologia e de Radiologia do Hospital de Clínicas e outros serviços médicos exemplares.
>> Mas, além de professor, Rubens Maciel foi educador. Criou a Capes e foi o idealizador e normatizador da pós-graduação - mestrado e doutorado - no Brasil e que, genialmente, rege até hoje essas atividades, responsáveis pelo incremento e qualificação da produção científica neste país. Contribuiu para a organização da Universidade Pan-Americana da Saúde, tendo em função disso vivido dois anos em Washington (EUA). É dele também a concepção de transformar o Hospital de Clínicas de Porto Alegre em fundação pública de direito privado - livrando-o da vala comum de hospitais públicos deficitários, sendo ainda hoje modelo reconhecido pelo Ministério da Saúde.
>> Defensor incondicional da meritocracia, argumentava, com ironia, que quando todo o serviço público brasileiro seguisse a organização do futebol, onde os melhores são festejados e bem pagos, e os incompetentes, dispensados, estaríamos prontos para começar a ganhar prêmios Nobel.
>> Coroando sua inigualável vida médica, foi eleito para a Academia Nacional de Medicina e, nos anos 1990, um dos fundadores da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina.
Palavra de médico
J.J. Camargo: Ser previsível cansa
A previsibilidade é a marca modesta das pessoas comuns que, no fundo, é o que somos
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