Na entrada do Centro de Transplantes havia uma área ampla, utilizada como sala de estar para os familiares dos transplantados. Como usualmente um doador significa o transplante de vários pacientes, aquele ponto de encontro era também o local de congraçamento de famílias desconhecidas, reunidas pela mais aleatória das variáveis, a da compatibilidade imunológica.
Quando, recentemente, se decidiu construir ali uma pequena capela, mais do que um local de encontroc de pessoas estressadas, se pretendeu dar um endereço respeitoso ao sentimento dominante naqueles encontros fortuitos que atravessam infindáveis madrugadas: a solidariedade.
O Jaime e o Osvaldo não se conheciam e, enquanto eram transplantados, suas famílias foram se reunindo na recepção do hospital, e depois de duas horas de confidências e palavras de apoio, já eram uma família só, irmanados pela angústia da espera, a incerteza do desfecho, a identidade de esperanças e, a partir daquele dia inesquecível, beneficiários da generosidade de uma mãe desconhecida que resolveu doar os órgãos do seu filho amado para que outras mães, que nunca conheceria, fossem poupadas da mesma terrível dor que lhe varava o coração. Ninguém podia pretender que aquele gesto lhe removesse o sofrimento, mas saber que vários pedaços de seu filho querido permitiriam que outros jovens voltassem para a vida era, pelo menos, uma tentativa desesperada de dar algum sentido à estupidez da morte na juventude.
Quando desci para contar que os transplantes haviam terminado e que ambos estavam bem, encontrei umas 20 pessoas abraçadas, rezando. Definitivamente não conseguiria dizer quem era parente de quem. A comunhão de angústias e desejos lhes borrara as feições.
Durante um tempo fiquei ouvindo o que rezavam, antes de interromper aquela corrente de oração que enchia o saguão de uma energia quase palpável.
Com as minhas notícias otimistas, houve uma pequena comemoração, e os abraços se multiplicaram, depois as orações recomeçaram. Havia muito o que agradecer.
Embaixo da marquise, apoiada num carro com a porta aberta, uma senhora de cabelos grisalhos assoava o nariz com insistência. Passados mais de cinco anos, ainda não sei o que me deu tanta certeza, mas eu soube. Olhei-a e soube, imediatamente. Ela aceitou o abraço silencioso e ficamos assim um tempo, compartilhando ao longe o burburinho de alegria dos que tinham razões de sobra para festejar.
Por fim, ela falou: "Sei que isso é irregular, mas não resisti em dar uma espiada e ver o tamanho do que tinha feito. Agora sei que fiz o que era certo, e já posso ir. Preciso enterrar meu filho!"
Palavra de médico
J.J. Camargo: O que era certo
Enquanto Jaime e Osvaldo eram transplantados, suas famílias pareciam uma só, beneficiárias da generosidade de uma mãe que nunca conheceriam
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