*J.J. Camargo é cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia
O Carlos Eduardo é de origem pobre, sempre estudou em escolas públicas e quando resolveu fazer medicina, um sonho acalentado desde a infância, não teve recursos para bancar um cursinho que compensasse o nível baixo das escolas que as limitações econômicas da família lhe impuseram.
Na terceira tentativa, trabalhando como revisor de uma editora durante o dia e estudando à noite, logrou aprovação numa escola de medicina do Interior, considerada média nos exames de avaliação do Ministério da Educação. Com uma formação deficiente, principalmente na parte prática, visto que a faculdade que cursou dispunha de um hospital muito pequeno e sucateado, não conseguiu classificar-se no exame de habilitação para a residência médica, e então, sem alternativas mais diferenciadas, decidiu aventurar-se no interior do país.
Cheio de entusiasmo e com a empolgação de 26 anos, encantou-se com as ruas floridas de uma cidadezinha de 16 mil habitantes, e foi recebido com grande alarido pelo prefeito que lhe ofereceu um salário que nunca imaginou ganhar no começo da vida: R$ 11,5 mil.
Na primeira noite chegou a pensar que devia agradecer ter sido reprovado na seleção para a residência médica e foi dormir embalado com a ideia de cuidar de gente já de manhã bem cedo.
Quando chegou ao precário ambulatório um jovem de 19 anos, com dor abdominal que começara ao redor do umbigo e depois se concentrara no lado direito, próximo à virilha, com quadro de vômito persistente e febre, o diagnóstico de apendicite aguda parecia evidente, e disso ele sabia tratar.
Já auxiliara pelo menos uma dúzia desses procedimentos e até executara dois deles com supervisão, no estágio do sexto ano.
A informação de que a pequena sala de cirurgia estava desativada porque a prefeitura nunca contratara um anestesista, por considerá-lo de rara utilidade visto que as cirurgias deviam ser feitas no município maior daquela macrorregião, trouxe um misto de desamparo e preocupação, mas ele tentou controlar o pânico inicial da inexperiência e partiu em busca daquele encaminhamento que, pelo agravamento iminente do quadro clínico, exigia a maior presteza e rapidez.
Ao tentar obter o telefone do hospital do centro de referência foi informado que o caminho deveria passar pelo posto de saúde do município, que contataria com o posto de saúde da cidade maior e, então, confirmada a urgência do caso ("como confirmada? uma apendicite aguda deve supurar, para se tornar uma urgência?"), se trataria do ritual (ambulância, necessidade de acompanhamento médico, etc.) para efetuar a transferência, desde que houvesse vaga no tal hospital, claro!
Enquanto a burocracia se arrastava, tentou de todas as maneiras controlar a infecção, mas sabia que o único antibiótico disponível na farmácia (!) do hospital não era o mais adequado naquela situação. Então só lhe restava tentar mantê-lo hidratado, tendo contra si uma febre persistente e vômitos incontroláveis.
Quase 48 horas depois, o Joacir (era assim que se chamava o rapaz) foi transferido, e naquela noite morreu durante a indução anestésica para uma cirurgia que não chegou a ser realizada. Tarde da noite, depois de muito esbravejar, sozinho no quarto de pensão, o Carlos Eduardo chorou.
Após cinco meses, ele estava de volta, decidido a prestar o serviço militar, e recomeçar a carreira na busca de uma qualificação técnica que lhe permita trabalhar num local onde a vida das pessoas seja tratada com mais seriedade. A perda do Joacir continuava lá, doendo latejado.
De boa-fé, como são todos os jovens, demorou um tempão para entender que aquele salário sedutor era só uma isca para incautos. Depois de dois meses, deixou de receber, com a informação de que a prefeitura não tinha mais recursos, e quando foi atrás de seus direitos, descobriu que tinha sido contratado por uma empresa fantasma e que, de fato, não tinha nenhum vínculo empregatício com a prefeitura daquela linda cidadezinha. Agora as lágrimas já tinham secado e ele estava tomado de indignação, esta mesma que tem empurrado os humilhados para os protestos de rua.
Quando lhe perguntei qual tinha sido o maior aprendizado, ele resumiu: "Eu trocaria todo o salário que me prometeram pela vida do Joacir, porque não há pior tortura do que assistir a uma morte evitável. E quem não entende isso, não sabe nada do que significa ser médico."