Usuários de drogas injetáveis que tomam doses diárias de pílulas antirretrovirais tinham metade das chances de se infectarem com o vírus do HIV, se comparados àqueles que não tomavam, revela um novo estudo que apresenta a prova final de que esse tipo de tratamento pode prevenir a AIDS em todos os grupos de risco. Estudos clínicos anteriores mostravam que a terapia também pode reduzir drasticamente o risco de transmissão do vírus de mãe para filho, bem como entre homens homossexuais, bissexuais e heterossexuais.
- Essa é a evidência que faltava para mostrar que os medicamentos utilizados para tratar a infecção também são eficazes em sua prevenção - afirmou o Dr. Salim S. Abdool Karim, importante especialista sul-africano em AIDS, autor de um comentário na revista The Lancet, que publicou o novo estudo na quarta-feira.
O número crescente de estudos clínicos mostrando que os antirretrovirais podem prevenir a infecção pelo vírus do HIV demonstra que os medicamentos são cada vez mais vistos entre o arsenal de armas contra a AIDS, incluindo camisinhas, abstinência e fidelidade, tratamento antirretroviral rápido, circuncisão masculina na África, géis antimicrobianos e outras opções.
O resultado formal do estudo, realizado com 2,4 mil usuários de drogas na Tailândia, mostrou que uma pílula de tenofovir por dia - terapia conhecida como profilaxia preexposição (PrEP, sigla em inglês) - reduziu as infecções em 49%. Usuários de drogas que consumiam o medicamento regularmente - com base nos níveis de tenofovir na corrente sanguínea - tinham 74% menos chance de se infectarem.
- Esse é um dia especial - afirmou o Dr. Jonathan Mermin, diretor de prevenção do HIV dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) em Atlanta - Esse é o ponto alto de uma década de pesquisa sobre a PrEP.
A profilaxia geralmente envolve tomar todos os dias uma pílula de tenofovir, ou um coquetel com tenofovir e outro medicamento. Porém, o tratamento também pode incluir géis vaginais com antirretrovirais utilizados antes do sexo, além de diversos medicamentos antirretrovirais tomados por mães infectadas antes do nascimento dos filhos.
O impacto potencial do tratamento de usuários de drogas na prevenção da disseminação do HIV é maior no leste europeu e na Ásia Central, onde o uso de drogas injetáveis é responsável por 80% das infecções. Por questões políticas e religiosas, muitos países dessas regiões proíbem as táticas mais conhecidas, como o fornecimento de agulhas limpas ou a forma de metadona ou de outras substâncias opioides não injetáveis.
Acredita-se que cerca de 10% das novas infecções no mundo - das quais oito por cento nos Estados Unidos - ocorra em função do compartilhamento de agulhas.
O novo estudo foi realizado por pesquisadores tailandeses em parceria com o CDC durante cinco anos em 17 clínicas de tratamento de usuários de droga. As circunstâncias nas quais a pesquisa foi realizada eram relativamente artificiais: usuários são extremamente inconstantes em relação aos compromissos firmados com a clínica e muitos chegam até a vender os medicamentos que salvam suas vidas. Por isso, os 2.411 participantes do estudo receberam pagamentos modestos para tomarem o medicamento todos os dias sob a supervisão de uma enfermeira. Eles recebiam US$ 8,75 por cada mês em que participassem do estudo, mais US$ 8,75 por semana em que aparecessem todos os dias, além de US$ 1,90 por dia. Quem aparecia apenas uma vez ao mês era pago para manter um diário relatando o uso do medicamento.
No estudo, 87% dos medicamentos foram tomados sob supervisão, mas alguns pacientes eram muito mais consistentes que outros; mulheres e usuários com mais de 40 anos se saíam melhor.
- Não devemos pressupor que esse seja o cenário no mundo real - afirmou Mitchell Warren, diretor executivo da AVAC, organização que faz lobby pela prevenção da AIDS.
Agora que ficou claro que os medicamentos funcionam, afirmou, novos estudos precisam abordar qual é a melhor forma de motivar usuários de drogas, que são imprevisíveis.
O Dr. Julio Montaner, especialista em AIDS da Universidade da Columbia Britânica, que trabalha com uma grande população de usuários de drogas de Vancouver, afirmou que a novidade de que a terapia funcionou entre os usuários - é muito boa e positiva - e representa uma nova peça do quebra-cabeça.
Entretanto, afirmou, ele teme que isso possa concorrer com um orçamento governamental de saúde que já é limitado e que atualmente é dedicado a táticas comprovadas: agulhas limpas, metadona, testes e tratamentos, que envolvem a busca agressiva de todos os soropositivos da cidade, colocando-os em tratamento antirretroviral imediato, e diminuindo em 96% a chance de infectarem outra pessoa.
Contudo, Mermin do CDC afirmou que - Acho que já passamos da fase da competição entre a prevenção e o tratamento. Nem isso é para todo mundo.
Os Estados Unidos estão organizando algumas pesquisas, segundo ele, para ver se táticas anti-HIV funcionam melhor em diferentes bairros e grupos de risco.
O novo estudo pode afetar as decisões individuais dos médicos. Por exemplo, um médico com um paciente que injeta drogas pode decidir submetê-lo a um tratamento profilático com doses diárias de tenofovir, assim como alguns médicos atualmente fazem com homossexuais não infectados com muitos parceiros sexuais, ou com pacientes não infectados e com grande número de parceiros.
Não se sabe ao certo como exatamente o tenofovir protegeu os participantes, destacou Karim, uma vez que muitos compartilham agulhas e fazem sexo por dinheiro para comprar mais drogas, de forma que se envolvem em dois comportamentos de risco.
Em vista da rapidez que a AIDS se alastrou por diversos grupos de risco quando apareceu pela primeira vez nos anos 80, os pesquisadores concluíram há muito tempo que injetar sangue e compartilhar agulhas seja o comportamento mais arriscado, seguido do sexo anal e, em seguida, do vaginal - embora haja poucos dados que comprovem isso.
Por essa razão, alguns pesquisadores acreditavam ser improvável que a profilaxia pré-exposição protegeria usuários de drogas, mas ficaram felizes em saber dos bons resultados.
Como exatamente isso funciona em qualquer grupo de risco depende da forma como os resultados são analisados, mas o medicamento parece proteger usuários de drogas com a mesma intensidade em homossexuais, assim como a circuncisão para heterossexuais na África.
De acordo com o CDC quando os resultados do estudo são ajustados para levar em conta apenas os participantes que tomaram as pílulas a maior parte do tempo, os efeitos de proteção são de 92% para homens homossexuais e de quase 90% para casais nos quais um parceiro está infectado, bem como de 84% para homens e mulheres heterossexuais e de 70% para usuários de drogas.
Dois estudos realizados com mulheres heterossexuais, conhecidos como "Fem-PrEP" e "Voice", foram interrompidos rapidamente, pois mulheres que recebiam o medicamento e as que recebiam placebos eram infectadas a um ritmo similar. Análises posteriores mostram que muitas dessas mulheres não estavam tomando os medicamentos. Algumas não acreditavam que corriam risco e outras diziam que se tivessem embalagens de pílulas antirretrovirais em casa, família e amantes potenciais achariam que elas estavam infectadas e se afastariam.
Contudo, mulheres solteiras heterossexuais de outro estudo realizado em Botswana e conhecido como TDF2, foram protegidas.