Pintar as células cancerígenas para torná-las visíveis para o sistema imunológico poder trabalhar. É com essa analogia, simples, que o médico gaúcho Fernando Kreutz descreve como funciona a vacina contra o câncer de próstata que começou a ser testada nos Estados Unidos recentemente. A descoberta é resultado de 25 anos de pesquisa e poderá, futuramente, ser utilizada para outros tipos de tumor.
A etapa de teste em solo norte-americano foi aprovada pela Food and Drug Administration (FDA), órgão equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O estudo contará com 230 pacientes voluntários que têm câncer de próstata e são considerados de alto risco. Ou seja, que precisam de cirurgia e têm chances de ter recorrência em um ano.
Kreutz explica que a vacina começa a partir de um fragmento de tumor que é retirado durante a cirurgia, levado para o laboratório e colocado em cultura. Em frascos, as células cancerígenas vivas e estéreis crescem e se multiplicam. Depois, chega a hora de tratá-las para obter o efeito desejado.
— É aí que vem a tecnologia, o achado científico: nós conseguimos fazer essas células se comportarem como uma célula no próprio sistema imunológico. Eu faço uma analogia de pintar as células. E esse processo de pintar as células faz com que elas sejam visíveis para o sistema imunológico, que, quando as vê pintadas, é ativado. E aí funciona como uma vacina. Quando ele se ativa, se espalha por todo o corpo identificando e destruindo as células tumorais.
Para 2024, a estimativa do Instituto Nacional do Câncer (Inca) é de que 71 mil casos de câncer de próstata sejam registrados no Brasil. O Ministério da Saúde garante que, quando diagnosticado precocemente, a chance de cura é alta. Ainda assim, a doença pode retornar, mesmo após a retirada do tumor. É justamente essa recorrência que a vacina desenvolvida pela equipe de Kreutz tenta prevenir.
A opção de tratamento já foi testada em mais de 100 pacientes brasileiros, em 2002. O estudo demorou vários anos e os dados foram coletados até 2018, para entender como a vacina se comportaria e quais seriam os efeitos. Kreutz conta que os resultados dos testes clínicos no Brasil foram fundamentais para conseguir a aprovação da FDA.
— A recorrência no grupo que tomou a vacina foi de 12,8% e no grupo que não tomou, 37%. Esse número é estatisticamente significativo. Eu tenho uma curva que é a dos pacientes que receberam a vacina e eu tenho outra curva dos pacientes que não receberam a vacina. Se uma estivesse em cima da outra, não teria benefício nenhum na vacina. Mas esse estudo demonstrou que tem uma diferença entre essas duas curvas de 27 meses. Isso quer dizer que os pacientes que fizeram a vacina, em média, tiveram 27 meses livres de recorrência a mais — explica.
Ele acrescenta que isso significa que a vacina tem dois efeitos principais. Um é de prevenir a recorrência. Isso significa que alguns pacientes não terão o retorno da doença. E o outro é atrasar a recorrência, de forma que os pacientes que registrarem a volta do tumor, tenham isso mais tardiamente.
Ao contrário dos testes clínicos brasileiros, que tiveram anos de acompanhamento, a etapa norte-americana do estudo será mais rápida. A previsão de Kreutz é de que em menos de 22 meses a FDA já esteja apta para considerar o registro e a comercialização do produto. Mais tarde, garante o médico, estudos para utilizar a tecnologia da vacina para tratar outros tumores sólidos poderão ser elaborados, possibilitando um leque maior de atuação.
O gaúcho fala sobre o assunto com orgulho. Para ele, a vacina é uma conquista do Rio Grande do Sul, do Brasil e do mundo:
— É uma bela história. É uma história que encanta todo mundo, e é um momento de celebração, na minha opinião. Tem saído na mídia e o pessoal está chamando de vacina brasileira. E eu me sinto muito honrado. Tenho usado a palavra privilegiado, de poder ter conseguido fazer isso, contra todas as dificuldades.