No início do ano, a meta da fotógrafa Vitória Morais, 29 anos, era fazer a prova de 21 quilômetros da Maratona Internacional de Porto Alegre em menos de duas horas. A enchente de maio fez com que ela interrompesse os treinos por um mês. Depois, a volta à rotina foi complicada: muita cobrança e pouco resultado. A corrida, que Vitória considera uma forma de recarregar as energias, quase deixou de ser prazerosa.
O caso de Vitória não é isolado. Segundo especialistas, metrificar hobbies é um comportamento cada vez mais comum. Na ânsia de desenvolver uma habilidade o mais rapidamente possível, superar desafios, tornar o passatempo mais envolvente ou ter conteúdo para postar nas redes sociais, atividades que deveriam ser de lazer têm se tornado exigências, com objetivos – muitas vezes, irreais – a serem atingidos. Quando os resultados não são como desejados, o sentimento é de ansiedade e frustração.
— O filósofo coreano Byung-Chul Han chama isso de sociedade do desempenho, que é um funcionamento cultural que nos leva o tempo inteiro a ter que mostrar que estamos cumprindo uma tarefa. A sensação do ser humano no nosso século é de estarmos sempre com tarefas para cumprir para além daquilo que chamamos de vida ordinária. Ou seja, trabalhar, arrumar a casa, levar o menino na escola. Isso está nos levando a transformar atividades de lazer em obrigações que têm metas — explica Alexandre Coimbra Amaral, psicólogo e escritor.
Uma revisão publicada na Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos identificou e mapeou mais de 600 processos psicológicos, biológicos, sociais e comportamentais que explicam os impactos dos hobbies na saúde física e mental. Entre os benefícios, o estudo cita como as atividades de lazer ajudam a construir habilidades psicológicas; a ativar mecanismos dentro dos sistemas endócrino, imunológico e nervoso central; a melhorar a motivação; influenciar o desempenho físico; e a reduzir a participação em atividades prejudiciais à saúde.
Além disso, Pedro Lombardi Beria, psiquiatra e coordenador do curso de Medicina da Universidade Feevale, explica que os hobbies ativam uma parte do cérebro chamada via mesolímbica, que está relacionada a sentimentos de prazer. Ao realizar uma atividade de lazer considerada divertida, essa área libera dopamina, uma substância química que gera sensações positivas e de felicidade.
No entanto, a metrificação dos passatempos pode diminuir os sentimentos bons e dar lugar a emoções negativas, que normalmente não costumam ser associadas a atividades de lazer.
Para Vitória, uma rápida conversa com os amigos comprova que a cobrança excessiva nos hobbies também faz parte da realidade de outras pessoas:
— Acabei me colocando metas que eu não conseguia cumprir, por conta de inúmeros fatores. E não só eu: conversando com amigos, dá para perceber que a gente tenta colocar uma perfeição nos hobbies como se fosse nosso trabalho. A gente se cobra tanto quanto o nosso trabalho remunerado. E, na verdade, não é. Os hobbies são para dar um descanso na cabeça e ser prazeroso. Mas a gente quer atingir níveis estratosféricos de performance e acaba desistindo ou diminuindo o ritmo, que é o meu caso.
Às vezes, reavaliar é preciso
A jornalista Juliane Mergener, 30 anos, também passou por uma reavaliação de métricas. Com o objetivo de retomar o hábito de ler livros, assinou um clube de leitura. A proposta do serviço é enviar aos assinantes uma obra por mês.
— Vi no clube de leitura uma oportunidade de ler pelo menos um livro por mês e eu acreditava que ia ser capaz de vencer todos os livros, todos os meses. Foi lá pelo sétimo livro recebido que não gostei muito da história e me enrolei para ler. Chegou o livro do mês seguinte, e eu ainda não tinha terminado o anterior, e aquilo virou uma bola de neve. Os livros continuaram chegando e eu não conseguia vencer o que eu já estava lendo. Isso foi me despertando uma ansiedade, não me fazia bem — relata.
Beria acrescenta que a metrificação dos hobbies pode ocorrer com diferentes atividades de lazer. Alguns aplicativos permitem a mensuração desses resultados, contribuindo para contar a quantidade de livros lidos, o número de treinos finalizados ou quantas palavras de um novo idioma foram aprendidas. O hábito, porém, pode ser prejudicial para a saúde mental.
— Metas alcançáveis são saudáveis. Isso é cientificamente comprovado. As metas alcançáveis tendem a estimular e perpetuar os comportamentos saudáveis, e as metas irreais tendem, na verdade, a diminuir nossa capacidade de promover comportamentos saudáveis, principalmente por frustração e por emoções e afetos negativos como angústia, ansiedade e tristeza, que estão associadas com o não bater a meta — explica.
Quando a meta é a satisfação
Para o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, a pressão não necessariamente tira o prazer da atividade, uma vez que cumprir metas pode ser satisfatório e motivador. O problema é quando os objetivos se transformam em uma competição que serve apenas para superar resultados e apresentar alta performance:
— Você pode ter prazer e também se sentir pressionado a performar. A questão é que há pessoas para as quais o prazer passa a ser dopaminérgico. “Cumpri uma meta, sinto prazer.” É uma deformação do conceito de prazer. O prazer não é mais pela experiência, e sim pelo resultado. É outro jeito de viver a experiência de um hobby, porque, antes desse momento, o hobby era só uma coisa ali para você.
Amaral também chama atenção para quando o hobby carrega uma pressão de aperfeiçoamento constante de habilidades. Ou seja, ao invés de meditar porque gosta de se conectar consigo mesma, a pessoa decide meditar para melhorar a capacidade de atenção e criatividade e, portanto, ser mais produtiva no trabalho. O psicólogo acredita que esse pensamento de buscar atividades que ajudem a produzir mais também é uma distorção do prazer, comum da época em que vivemos.
— Tudo o que tem métrica afeta a saúde mental, porque isso nos lembra, desde o tempo da escola, que, nessa sociedade, somos medidos por números, somos quantificados o tempo todo – afirma. – Temos métricas que nos colocam num lugar ou outro dentro da sociedade. Então, se passamos a viver o hobby como uma métrica, levamos essa angústia que vivemos quando nos sentimos um número. Então o hobby não fica leve como poderia ser, e a saúde mental, ainda mais no século 21, pede espaços livres dessa contaminação angustiante de ter sempre que apresentar um resultado.
A influência das redes sociais
Os especialistas acreditam que esse comportamento de transformar hobby em algo metrificado é diretamente impactado pelas redes sociais. O costume de publicar conquistas pode incentivar a comparação e a pressão para obter resultados que mereçam ser mostrados, reforçando uma necessidade de validar o sucesso.
— As redes sociais aumentam o mecanismo disfuncional de pensar com essas comparações injustas, principalmente porque as pessoas tendem a postar o que acham que é um feito. Então postam que estão fazendo exercício físico, uma nova leitura, aprendendo um novo idioma, mas nem todo mundo sabe as batalhas que cada um teve que traçar para chegar até ali. Só vemos o resultado — pontua o psiquiatra Pedro Lombardi Beria.
As redes sociais aumentam o mecanismo disfuncional de pensar com essas comparações injustas, principalmente porque as pessoas tendem a postar o que acham que é um feito
PEDRO LOMBARDI BERIA
Psiquiatra
Anna Lucia Spear King, psicóloga e fundadora do Instituto Delete – Uso Consciente de Tecnologias, entende que a comparação faz parte das relações construídas pela internet:
— As redes sociais são o modo de a sociedade se relacionar hoje em dia. E elas costumam ter um padrão que é considerado o ideal. É por isso que, sobretudo os jovens, que frequentam as redes, ficam tentando seguir aquilo que parece ser o modelo imposto. Acabam não conseguindo replicar e, às vezes, se frustram. Tudo é cobrado nas redes sociais. As pessoas se espelham nos influenciadores. Se esses influenciadores postarem determinadas práticas de atividades físicas ou outra situação, os usuários procuram seguir.
Depois que decidiu diminuir o ritmo dos treinos de corrida, Vitória Morais conta que passou a consumir conteúdo de influenciadores que têm uma rotina parecida com a dela. Ou seja, pessoas que têm a corrida como um hobby, e não um ganha-pão. Assim, ela afirma que consegue não se comparar e se cobrar tanto. Com metas alcançáveis e inspirações mais plausíveis, a corrida ficou mais leve.
— São dois mundos bem diferentes. Tem a Manu Cit (@manucitydaily, no Instagram), por exemplo, que vive para isso. Acho superlegal a rotina dela, mas não tenho como seguir. E tem a Julia Sette (@sette–julia), que eu acompanho mais. Ela vive da corrida, mas transforma tudo em algo mais tranquilo de se fazer. Ela não fica naquela cobrança de treinar e treinar. Claro que a gente se inspira e treina porque quer sempre um tempo melhor, mas não deveria ser de uma forma tão perfeccionista como estava sendo para mim — relata Vitória.
Como estabelecer metas saudáveis
Depois da frustração por não conseguir os resultados esperados em seus respectivos hobbies, a fotógrafa Vitória e a jornalista Juliane decidiram mudar. Uma desacelerou o ritmo e a cobrança dos treinos de corrida, e a outra parou de assinar o clube de leitura. Agora, a meta de Vitória é correr a meia maratona, marcada para o dia 28 de setembro, no tempo que for possível. Já Juliane só quer aproveitar os livros de que gosta sem pressa.
— A corrida, assim como outras coisas também, é muito sobre a constância. Mesmo que a gente não queira, mesmo que a gente esteja num dia ruim, a gente nunca se arrepende de ir, treinar e fazer o que gosta. É isso que a gente tem que ir mentalizando. A gente vai lá, faz o que pode e fica feliz por ter ido, por não ter desistido — confessa Vitória.
O psicólogo Alexandre Amaral defende que quem quer mudar precisa ter em mente de que não ter métricas pode ser difícil, considerando que a sociedade e as redes sociais reforçam a necessidade de medir o desempenho constantemente.
— É preciso começar a fazer uma contracultura de que você tem direito a atividades e a períodos da sua vida em que você não meça nada, em que você simplesmente flua a experiência. Até você entrar num hábito com essa experiência nova de não medir o seu desempenho, isso pode ser angustiante, mas insistir nisso pode ser muito importante — sugere.
É preciso começar a fazer uma contracultura de que você tem direito a atividades e a períodos da sua vida em que você não meça nada, em que você simplesmente flua a experiência
ALEXANDRE COIMBRA AMARAL
Psicólogo
Amaral recomenda, também, que as pessoas fiquem mais próximas de amigos e sigam influenciadores que não se cobrem excessivamente. Para ele, o contato com outros incomodados buscando seguir essa contracultura pode ser benéfico para entender que ter um alto desempenho não é obrigação.
Já o psiquiatra Pedro Lombardi Beria aconselha, em um primeiro momento, a trocar as metas irreais por metas alcançáveis. Como alternativa a criar um objetivo de aprender um novo idioma em um ano, por exemplo, o psiquiatra acredita que estabelecer desafios como assistir um episódio de uma série na nova língua ou conseguir compreender o conteúdo de um texto curto podem ser formas mais saudáveis e realistas de mensurar a evolução no hobby.
— A meta alcançável faz com que consigamos mensurar o resultado, tem uma sensação de bem-estar por ter cumprido o dever e isso faz com que fiquemos engajados novamente no comportamento. Além disso, é importante trabalhar com esse processo de aceitação, de evitar excesso de julgamento durante as experiências e modificar um pouco a nossa necessidade de aprovação externa — complementa Beria.
Por fim, o psiquiatra afirma que as comparações injustas, comuns das redes sociais, também devem ser evitadas. Definir metas que condizem com a realidade pessoal, seguir pessoas que promovam um consumo de conteúdo consciente e trabalhar para ter uma autoimagem positiva e forte podem ajudar nesse processo.