Quando o prédio de cinco andares que abriga o Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS) foi erguido no bairro Bom Fim, na década de 1940, o cenário do município era bem diferente. O movimento de pessoas e veículos era menor, assim como os índices de violência e a gravidade dessas vítimas. As mudanças demográficas fizeram com que a instituição de saúde fosse se adaptando, tornando-se referência no atendimento de casos de trauma para todo o Rio Grande do Sul. É com esse status e um novo projeto de expansão em vista que o hospital completa 80 anos na próxima sexta-feira (19).
Até a inauguração da sede localizada no Largo Teodoro Herz, entre as avenidas Osvaldo Aranha, Venâncio Aires e José Bonifácio, em 19 de abril de 1944, o serviço de assistência em saúde de Porto Alegre para casos urgentes funcionava no Paço Municipal. Naquela época, as “ambulâncias” ainda eram de tração animal. De acordo com a diretora-geral do HPS, Tatiana Breyer, a instituição começou a ser construída durante o governo de José Loureiro da Silva e foi entregue já na gestão de Antônio Brochado da Rocha, quando a cidade contava com hospitais que atendiam basicamente casos clínicos e de pediatria.
Em 2004, o prédio histórico ganhou um anexo, com acesso pela Avenida Venâncio Aires, para abrigar setores administrativos. A entrada principal também foi adaptada, anos depois, para que os pacientes tivessem um local coberto para aguardar atendimento.
Mais recentemente, a instituição passou por melhorias como as reformas das Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) pediátrica e do quarto andar, a criação de uma enfermaria de trauma pediátrico e a aquisição de equipamentos para diferentes setores. Já o banco de sangue do hospital, que passou anos fechado devido à falta de uma equipe especializada, foi reaberto em 2023. Mesmo assim, Tatiana admite que ainda há questões estruturais importantes a serem resolvidas:
— Tem a questão do telhado, que já é um problema crônico e que agora finalmente vai sair. Assinamos o contrato para começar a reforma. Tem a reforma da UTI de queimados, que para nós também é fundamental. Estamos reformando toda a parte de rede de água quente do hospital. Ainda tem parte de geradores e infraestrutura de rede de gases. É uma série de intervenções que vamos fazendo ao longo dos anos para dar mais qualidade assistencial.
Já em relação às principais mudanças ocorridas nos atendimentos no decorrer dos anos, a diretora-geral cita o aumento da circulação de automóveis, da violência e da gravidade dos feridos. Outro fator que afeta a rotina da instituição é o envelhecimento da população. Diariamente, de cinco a seis idosos chegam ao hospital com algum membro quebrado, resultado de quedas em casa.
Recebemos aqui vítimas de tiros de metralhadora e de fuzil, e isso é bem complicado de resolver.
TATIANA BREYER
Diretora-geral do HPS
— Os meus amigos do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) dizem que, dentro do atendimento pré-hospitalar, antigamente traziam os pacientes com uma série de ferimentos. Agora, muitas vezes não conseguem nem trazer, porque as pessoas morrem no local, devido ao calibre do armamento do crime organizado. Recebemos aqui vítimas de tiros de metralhadora e de fuzil, e isso é bem complicado de resolver — comenta.
Conforme Tatiana, o HPS também atua como um grande sinalizador do funcionamento da rede de saúde de Porto Alegre e da Região Metropolitana. Isso porque, quando existe algum problema em outro hospital, a procura por atendimentos na instituição aumenta — algo que ocorreu nas últimas semanas, devido a questões como troca de gestão, greves e suspensão de atendimentos em hospitais de municípios vizinhos:
— Percebemos que as pessoas têm urgência em resolver seus problemas. E, na unidade de atenção primária, às vezes há uma certa dificuldade de ter os exames prontamente. Por isso temos essa procura enorme de pacientes pela nossa porta de entrada. Isso acaba superlotando um lugar que deve atender coisas mais graves, como o acidente de trânsito e todas as questões de violência.
Custo mensal de R$ 17 milhões
Com um vasto leque de especialidades ofertadas e cerca de 1,5 mil funcionários, o HPS tem um custo mensal de aproximadamente R$ 17 milhões. A maior parte desse valor (90%) é de responsabilidade da prefeitura de Porto Alegre, mas a instituição também recebe recursos do Estado e do governo federal. O hospital conta ainda com valores repassados pela iniciativa Troco Amigo — o montante arrecadado no ano passado foi de R$ 327 mil.
De acordo com a diretora-geral, houve um recente corte no repasse do governo estadual, por meio do programa Assistir, de R$ 10 milhões. O programa faz o custeio de R$ 73 mil para a porta de emergência, o que é insuficiente, já que a manutenção do serviço custa em torno de R$ 6 milhões mensais.
— É um hospital que custa muito caro, porque ter profissionais de prontidão de várias especialidades médicas é extremamente oneroso. E são pessoas extremamente qualificadas, que garantem atendimento para a população em oftalmologia, otorrinolaringologia, cirurgias bucomaxilofacial, procedimentos de traumatologia, fora toda a parte de atendimento ao trauma, especificamente ao politraumatizado — aponta Tatiana.
O tratamento de queimados é um dos serviços mais caros, pois envolve o uso curativos que custam cerca de R$ 5 mil e a cirurgia plástica. A manutenção desse setor fez com que o HPS se tornasse referência para todo o Estado. Em 2013, o hospital atendeu inclusive algumas das vítimas da tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, que foram transferidas para a Capital.
— A referência em queimados foi construída ao longo dos anos, através do atendimento de primeira linha que sempre demos a esses pacientes. Temos excelentes cirurgiões plásticos que fazem esse tratamento, que é basicamente tirar aquela pele que está queimada e fazer o enxerto. Só que para isso dar certo é um trabalho hercúleo, com curativo, vigilância e monitoramento. É uma expertise que adquirimos — destaca.
O hospital conta com especialistas clínicos, emergencistas, neurocirurgiões, cirurgiões vasculares, gerais e de trauma, hematologistas, intensivistas e radiologistas, além de uma grande equipe de enfermagem, nutrição, fisioterapia psicologia e psiquiatria. Dos 1,5 mil profissionais que atuam na instituição, entre servidores e terceirizados, 467 são técnicos e auxiliares, 110 enfermeiros e 259 médicos.
Novo projeto de expansão
Em dezembro de 2023, o HPS apresentou seu novo projeto de expansão, que se refere à construção de outro prédio ligado à estrutura histórica, com entrada pela Avenida José Bonifácio. A ideia é que o edifício tenha oito andares e 11 mil metros quadrados, com capacidade para abrigar até 110 leitos, ambulatório, espaço de ressonância magnética, raio X e áreas administrativas e de apoio.
— Temos a lavanderia, a parte de manutenção, de geradores, de climatização e de rede de gases nessa parte de baixo, que foi feita depois do prédio histórico e precisa ser modernizada. Então, isso tudo vai ganhar um ar mais seguro e mais moderno com esse novo prédio — relata a diretora-geral.
O investimento necessário é de R$ 140 milhões, sendo R$ 110 milhões para a construção do prédio e R$ 30 milhões em equipamentos. A expectativa é que a nova estrutura fique pronta em 2028.
No mesmo evento, foi anunciado o planejamento para a revitalização da fachada da instituição. O projeto de reforma prevê a solução de problemas estruturais, como infiltrações, e já está pronto — o custo de R$ 62 mil foi pago pela Fundação Pró-HPS. Já as obras devem custar R$ 4,2 milhões, que serão quitados pela prefeitura. Conforme Tatiana, a expectativa é que a reforma inicie ainda no primeiro semestre deste ano.
A celebração do aniversário de 80 anos da instituição, na próxima sexta-feira (19), a partir das 10h, será realizada no terreno que abrigará o novo anexo do HPS. De acordo com a prefeitura, a programação ainda está sendo alinhada, mas será uma cerimônia intimista, com a participação da Banda Municipal. Estão previstas homenagens a ex-diretores e funcionários, falas oficiais, apresentação da história do hospital e bolo.
Impacto na vida de funcionários e pacientes
No decorrer de oito décadas, milhares de pacientes foram salvos nos pavilhões do HPS. Leônidas Meirelles, 32 anos, foi um deles. O professor de Educação Física sofreu um acidente de motocicleta em janeiro de 2020 e foi parar direto na sala vermelha, destinada aos pacientes vítimas de trauma.
Meirelles relata que a colisão com um ônibus fez com que entrasse em coma imediatamente e que, devido à gravidade dos ferimentos, sua família foi informada de que poderia não sobreviver:
— O fato de entrar direto na sala vermelha e ter todas as especialidades ali foi exatamente o que me salvou, porque eu estava muito ferido. Eu tive uma fratura no fêmur, quebra do quadril inteiro, traumatismo craniano e tive que colocar bolsa de colostomia, porque eu tive rompimento do esfíncter. Se não fosse aquele atendimento tão rápido, talvez eu não estivesse aqui hoje.
O professor permaneceu em coma durante quase três meses e, quando acordou, já estava na enfermaria. Ele conta que passou por diversos procedimentos no hospital e que foi muito bem tratado por toda a equipe no tempo em que ficou internado.
O advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Luiz Antônio Azevedo, 75 anos, também precisou de atendimento de urgência na instituição. Isso porque, no início da noite de 9 de dezembro de 2017, o idoso foi assaltado na esquina da Rua Barros Cassal com a Avenida Independência e, durante o ataque, foi atingido por cinco facadas, sendo que uma atingiu o coração e, outra, a cabeça. Azevedo foi socorrido na rua e levado ao HPS.
O fato de entrar direto na sala vermelha e ter todas as especialidades ali foi exatamente o que me salvou, porque eu estava muito ferido.
LEÔNIDAS MEIRELLES
Atendido pelo HPS em 2020
— Segundo o médico que me atendeu na oportunidade, se eu levasse mais 10 minutos para chegar, meu destino seria um cemitério e não mais o HPS. Foram cinco facadas que me custaram um tempo de aproximadamente 20 dias em coma. Fiquei sete dias aqui no HPS e depois fui transferido para o Hospital Moinhos de Vento — relata o advogado.
Azevedo destaca o atendimento humanizado que recebeu durante o período em que permaneceu na instituição, onde passou por uma toracotomia (abertura cirúrgica do tórax). O advogado também comenta que, apesar de ter estado no local poucas vezes antes do assalto, guardava uma lembrança muito carinhosa do hospital, porque seu pai era médico e trabalhou lá.
— Lembro que meu pai dizia sempre: “o dia que acontecer alguma coisa com vocês, corram para o HPS, não vão para outro lugar, é no HPS que vocês vão encontrar a assistência adequada para um episódio como, por exemplo, um acidente”. E aí chegou a minha vez de vir aqui e experimentar. E quando eu falo no HPS é só para ressaltar e enaltecer o que é isso aqui e como as pessoas aqui são tratadas — reforça Azevedo.
O acolhimento relatado pelos ex-pacientes também é sentido por quem presta o atendimento. O atendente de enfermagem Roberto Peres Cunha, 66 anos, trabalha na instituição há mais de quatro décadas e garante que todas suas atividades envolvem muito amor e carinho.
— É minha segunda casa. Faço tudo com dedicação. Recebo e dou carinho, sofro junto também. Já poderia sair, porque sou aposentado, mas tenho uma missão para cumprir, tenho disposição e tenho vontade. Recebo bastante carinho e isso me dá força para continuar — comenta Cunha, referindo-se aos pacientes e aos colegas do hospital.
De acordo com o atendente de enfermagem, a demanda de atendimentos era maior quando trabalhava à noite, no setor de triagem. No decorrer desse período, lembra de casos marcantes, como a madrugada em que atenderam o pai de um colega, que havia sofrido uma parada cardíaca.