A disponibilidade apenas recente de vacinas contra a dengue no Brasil é consequência da complexidade da doença e da falta de interesse da indústria farmacêutica no financiamento de imunizantes. Essa é a avaliação de especialistas sobre os motivos para o país não ter, em 2024, uma ferramenta de combate à dengue com ampla distribuição.
Dois imunizantes são autorizados no Brasil: Qdenga, incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS) em dezembro, e o Dengvaxia, disponível apenas na rede privada. O Instituto Butantan está na fase final de desenvolvimento de um vacina, que deve ter a pesquisa encerrada em junho.
Ter o imunizante, porém, não basta: investimentos para produzi-los em grande quantidade serão necessários para o país atender a necessidade da população, acrescentam os estudiosos consultados pela reportagem.
Doença complexa
Estudos recentes e imunizantes aprovados – veja abaixo mais detalhes – indicam que o país terá vacinas para combater a dengue no futuro. No entanto, foram décadas de surtos e epidemias da doença sem uma resposta biológica. Segundo pesquisadores, os esforços iniciais para desenvolver um imunizante contra a dengue ocorreram na década de 1920.
Para Paulo Ernesto Gewehr Filho, infectologista do Hospital Moinhos de Vento, a “demora” na elaboração pode ser explicada pela complexidade do empreendimento.
— É uma doença com quatro sorotipos – 1, 2, 3 e 4 – e a vacina tem que funcionar contra todos. Isso é um grande desafio, pois são quatro vacinas dentro de uma só — resume.
O especialista exemplifica outras características da dengue que causam complicações para os cientistas:
— A pessoa se recupera do primeiro episódio de dengue e desenvolve uma resposta imunológica. Na segunda infecção, por conta dessa resposta imunológica alterada, o paciente tem uma exacerbação da doença, uma gravidade maior. Ou seja: não se pode dar uma vacina protegendo contra a dengue que simule uma primeira infecção, pois isso aumenta o risco no caso de um segundo episódio (de infecção). Por isso é uma doença complexa — pontua.
O estudioso ressalta que cada doença tem particularidades e empecilhos para o desenvolvimento de vacinas. Como exemplo, cita a trajetória para a elaboração do imunizante contra a meningite B, feito mais trabalhoso na comparação a outros tipos de doença. Segundo ele, o caso da covid-19 é distinto porque o vírus desencadeou um cenário distinto na saúde:
— Chegamos rapidamente a várias vacinas porque houve um esforço global de instituições públicas e privadas, com financiamento e mobilização também de equipes científicas, para a pesquisa e desenvolvimento rápido de um imunizante que pudesse ser utilizado em pouco tempo para salvar vidas. Isso fez com que a covid se tornasse uma página quase virada.
Pouco interesse e financiamento escasso
Outra explicação para o atraso é que a dengue faz parte das Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs), na definição da Organização Mundial de Saúde (OMS). A entidade diz que esse grupo de enfermidades recebe pouco financiamento em pesquisa na agenda de saúde global, o que prejudica 1,7 bilhão de pessoas em vulnerabilidade econômica.
— Os países ricos nunca se preocuparam muito porque a dengue não é uma doença que acontece nas regiões frias, como América do Norte e Europa. Em alguns lugares, como a Flórida, nos Estados Unidos, até ocorrem casos, mas ainda sem configurar uma epidemia. Ou seja, não se constitui um problema de saúde pública: por isso nunca houve um investimento das grandes indústrias farmacêuticas — comenta Alexandre Vargas Schwarzbold, infectologista consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e professor na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Os países ricos nunca se preocuparam muito porque a dengue não é uma doença que acontece nas regiões frias, como América do Norte e Europa.
ALEXANDRE VARGAS SCHWARZBOLD
Infectologista e professor da UFSM
O pesquisador se diz otimista com a possibilidade de, no futuro, o Brasil suprir a demanda por vacina contra a dengue se o imunizante do Butantan for incorporado ao SUS e/ou houver acordo de transferência de tecnologia da vacina atual, a Qdenga, produzida no Japão.
A dificuldade seria, porém, fabricar vacinas em um curto espaço de tempo e em grande quantidade ainda neste ano.
— Não é assim tão fácil produzir em escala industrial mesmo se tivermos a vacina. Até porque só o Butantan não deve dar conta dessa quantidade de produção, de provavelmente de 50 a 100 milhões de doses. Temos que produzir também outras vacinas do PNI (Programa Nacional de Imunizações), como influenza, pólio, entre outras. Penso que o Brasil só conseguiria fazer isso ampliando e criando novos centros de produção — diz o professor da UFSM.
Além da tecnologia e os locais para produzir imunizantes, o país teria de fazer outro investimento para aumentar a capacidade de produção: ter o ingrediente farmacêutico ativo (IFA), fundamental na formulação dos imunizantes.
— Não é a questão apenas de abrir uma grande fábrica, ter outro Butantan, que vamos conseguir produzir. Além da necessidade de uma estrutura para produção, temos de importar ou ter uma estrutura para fazer o IFA em quantidade suficiente para produzir vacinas. Ter essa estrutura pode demorar meses — projeta Schwarzbold.
Como está a vacina do Butantan
O desenvolvimento do imunizante do Instituto Butantan é uma das esperanças para acelerar a imunização no país. Em nota à reportagem, a instituição disse que espera encerrar o estudo clínico em junho deste ano, quando todos os voluntários completarem cinco anos de acompanhamento.
A vacina (do Butantan) tem uma proteção muito boa.
FABIANO RAMOS
Diretor técnico do Hospital São Lucas
Depois, o instituto encaminhará um dossiê com os dados do imunizante à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no segundo semestre de 2024, o que dará início ao processo de solicitação do registro definitivo.
Com a aprovação, caberá ao Ministério da Saúde (MS) a implantação do imunizante no Plano Nacional de Imunização e no SUS.
No dia 31 de janeiro, o Butantan publicou um artigo no New England Journal of Medicine, uma das mais importantes revistas científicas do mundo, sobre a pesquisa, que indica "alto perfil de segurança e eficácia em pessoas com e sem exposição prévia ao vírus". O imunizante evitou a doença em 79,6% dos vacinados ao longo de dois anos, protegendo tanto quem já tinha tido dengue quanto aqueles sem infecção prévia.
— A vacina tem uma proteção muito boa. Uma das grandes vantagens dela é ser de dose única, então oferece uma proteção mais rápida e abrangente. Ter mais doses atrapalha a população a completar o ciclo — comenta Fabiano Ramos, diretor técnico do Hospital São Lucas (HSL), que recrutou 850 voluntários para os testes em Porto Alegre.
O outro centro participante da pesquisa da vacina do Butantan no Estado é o Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Qdenga
O imunizante é do laboratório japonês Takeda e o único incorporado ao SUS. Segundo o governo federal, cerca de 3,2 milhões de pessoas devem ser vacinadas ao longo de 2024. A primeira remessa, com cerca de 757 mil doses, chegou ao Brasil no dia 20 de janeiro. Mais 568 mil doses estão previstas para chegar ainda no mês de fevereiro.
Não foram adquiridas mais por conta da “capacidade limitada de fabricação das doses da vacina pela farmacêutica”. Além disso, o Ministério da Saúde adquiriu mais 5,2 milhões de doses. Para 2025, a pasta já contratou 9 milhões de vacinas.
Na próxima semana, as doses começam a ser distribuídas a 521 municípios selecionados pelo Ministério da Saúde para iniciar a vacinação na rede pública. O Rio Grande do Sul, porém, não faz parte da lista. Serão vacinadas crianças e adolescentes de 10 a 14 anos de idade, faixa etária que concentra maior número de hospitalizações por dengue, atrás apenas dos idosos.
Dengvaxia
É a outra vacina disponível no Brasil, mas que só pode ser utilizada por quem já teve dengue. A tecnologia é do laboratório francês Sanofi-Pasteur. A Dengvaxia não foi incorporada ao SUS e, por isso, só é encontrada na rede particular. Ela é contraindicada para indivíduos que nunca tiveram contato com o vírus da dengue em razão de maior risco de desenvolver quadros graves da doença.