No final de agosto, João Carlos Silveira Gomes, 71 anos, foi levado às pressas para o Hospital de Pronto Socorro de Canoas (HPSC). Com uma parada cardiorrespiratória, ele foi reanimado pela equipe ao chegar no local.
— Ele "morreu" por quatro minutos, foi o tempo até conseguirem reanimar — recorda a esposa do aposentado da Aeronáutica, a dona de casa Jussara Pinheiro Gomes, 71 anos.
Morador do bairro Niterói, em Canoas, o casal conhece bem os meandros da saúde pública na cidade da Região Metropolitana. A situação, inclusive, foi um dos motivadores para a família decidir se mudar para Santa Catarina. Mas o revés na saúde de João adiou a viagem definitiva, por enquanto.
A reanimação e posterior internação no HPSC tranquilizou Jussara, mas era o começo de uma jornada dolorosa. A falta de insumos, medicamentos básicos e até alimentos assustou a família. A superlotação, com pacientes espalhados em macas por corredores também, como recorda Jussara.
E então veio uma nova demanda: João precisaria passar por um cateterismo. Sem conseguir o procedimento no HPSC, a família iniciou uma peregrinação por prefeitura, Secretaria Municipal de Saúde, ouvidorias e tudo mais que era possível. A ideia era transferir o idoso para o Hospital Universitário (HU), considerado o maior e mais estruturado da cidade. Isso só aconteceu cerca de 20 dias depois da baixa no HPSC. Desde 9 de outubro, o idoso está no HU.
— Transferiram ele para o (Hospital) Universitário, mas ainda não fizeram o cateterismo. Chegaram a marcar, mas ele teve febre e foi novamente adiado — conta Jussara.
Na tarde de quarta-feira, a reportagem de GZH conversou com Jussara em frente ao HU. Ela contou que, além da demora no exame, tinha que comprar alguns medicamentos básicos que o hospital não possuía no estoque.
— A gente sente que os médicos e enfermeiros fazer tudo o que podem, mas tem um limite. Não depende só deles, tem que ter equipamentos para trabalhar — cita a moradora do bairro Niterói.
O caso de João é um entre os vários que trazem à tona a ferida no sistema de saúde de Canoas. E a situação não afeta apenas a cidade da Região Metropolitana. Os três hospitais da cidade são referência para mais de 150 municípios gaúchos. É uma ferramenta importante no suporte a Porto Alegre, que também recebe gente de boa parte do Estado.
Quem vem de outras cidades também vê problemas
Para quem precisa embarcar num transporte e deslocar-se até Canoas, os problemas incomodam ainda mais, com um sentimento de viagem perdida ou estar "andando em círculos". Há pelo menos oito anos, a aposentada Iraci Bandeira, 74 anos, faz a jornada entre Igrejinha e Canoas. Uma artrose no joelho direito lhe causa dor e dificulta a caminhada. Por isso, uma muleta a acompanha.
Desde que iniciou os tratamentos no HU, a tentativa era passar por uma cirurgia. Mas o procedimento nunca chegou a ser encaminhado. Hoje, ela diz que é constantemente advertida pelos médicos que lhe atendem sobre a impossibilidade de operação por falta de recursos e estrutura.
— Não tenho do que reclamar em relação ao atendimento, sou muito bem tratada pelos profissionais. Mas eles dizem que não tem como fazer a cirurgia atualmente — lamenta Iraci, que tem a companhia do marido, Danilo Pinto Bandeira, 76 anos, durante as viagens.
No início de outubro, a prefeitura de Canoas lançou um programa com 10 medidas para tentar solucionar as questões do HU. A administração destacou que houve queda na arrecadação total de mais de 8% neste ano e a redução de mais de 17% de repasses do Estado para a área da saúde, em comparação com 2022. O custo mensal para manter a estrutura do HU é de aproximadamente R$ 14 milhões. O hospital tem dívidas referentes a atrasos no pagamento de fornecedores, funcionários e rescisões trabalhistas. Segundo a prefeitura, a dívida atual da instituição é de R$ 30 milhões.
Com a falta de recursos, procedimentos eletivos cancelados e equipamentos com problemas são parte da rotina. Um exemplo disso foi o setor de hemodinâmica do hospital, que operou durante 11 meses com capacidade reduzida. Somente no início deste mês, a peça que impedia que os exames fossem realizados na sua plenitude foi importada da Alemanha com custo de R$ 480 mil.
Segundo o HU, o angiógrafo permite a obtenção de imagens do sistema circulatório de forma minimamente invasiva e realiza diagnóstico em alta definição, sendo muito utilizado pelas áreas da cardiologia (cateterismo, angioplastia), cirurgia vascular (endopróteses), neurorradiologia e pneumologia. Com o conserto do equipamento, o objetivo é realizar mais de 20 atendimentos por dia.
A outra situação, o represamento de cirurgias eletivas, também passou por uma investida recente da administração municipal. Desde a última segunda-feira (16), um mutirão de cirurgias eletivas entrou em vigor. As operações de hérnia serão as primeiras a puxarem a fila do mutirão. Em nota, o HU informou que "o objetivo é a realização de 20 a 25 procedimentos por semana e de 80 a 100 intervenções cirúrgicas por mês". A prefeitura projeta que o HU "esteja operando dentro da sua normalidade no período de seis a oito meses".
Internação de dois meses para retirada de vesícula
Mas enquanto isso, as esperas seguem. Um morador da Região Metropolitana, que prefere não se identificar, levou a esposa até Canoas para ser atendida no Hospital Nossa Senhora das Graças (HNSG). Com fortes dores abdominais, a mulher sofria com problemas na vesícula.
— Ela baixou em 25 de agosto, a pedra na vesícula se deslocou e ocasionou uma pancreatite aguda. Para mexer nisso, os médicos disseram que precisava de um exame específico, que só podia ser feito no HU — relata o marido.
O exame chegou a ser marcado para cinco dias depois, mas não foi realizado. Enquanto isso, a mulher seguia internada no HSNG, mesmo precisando de um procedimento de menor complexidade. Com a internação, o marido presenciou situações como a falta de medicamentos básicos e alimentação precária.
— Sentimos que faltam recursos para o trabalho ser bem executado. Um dia precisei comprar até omeprazol (medicamento indicado para tratar certas condições em que ocorra muita produção de ácido no estômago), porque o hospital não tinha. E sempre levo alguma fruta, sanduíche, biscoito, para complementar a alimentação do hospital — recorda ele.
Depois de dois meses internada, a paciente passou pelo exame necessário na última quarta-feira (18) no HU. Foi retirado o cálculo, mas a paciente ainda precisaria remover a vesícula. A internação seguiu por mais dois dias e a operação ocorreu na manhã de sexta-feira. Depois de dois meses de internação, enfim, veio a alta.
Sindicado médico aponta crise grave
Conforme GZH adiantou na quinta-feira, a crise na saúde de Canoas deverá passar pelo crivo da autoridade médica máxima no Estado. Isso porque o Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) solicitou ao Conselho Regional de Medicina (Cremers) uma vistoria nos três hospitais que atendem pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na cidade da Região Metropolitana: HU, HNSG e HPSC.
A ideia da vistoria, que será realizada pelo Departamento de Fiscalização do Cremers, é fazer "uma radiografia da real situação do HU, mapear os problemas para encontrar soluções junto com a gestão municipal, com a finalidade de garantir o melhor atendimento da população". A autarquia confirmou o ato, mas ainda não tem data para realizá-lo.
O pedido da vistoria partiu da Frente Estadual em Defesa da Saúde de Canoas, formada pelo Simers no início deste mês. O próprio Cremers também faz parte da frente estadual, assim como a Associação dos Médicos do Estado (Amrigs), Associação Médica de Canoas (Somedica), Ministério Público Estadual (MP-RS) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS).
Na avaliação do diretor-geral do Simers, Fernando Uberti, a situação nos hospitais de Canoas é a mais grave dos últimos anos. Segundo ele, os relatos de profissionais que atuam nos espaços revelam problemas agudos em relação à falta de materiais de trabalho. Além disso, o pagamento dos salários também é problema. A prefeitura alega que resolveu o caso para médicos do regime CLT, e que os atrasos são de 10 dias para os profissionais no regime Pessoa Jurídica (PJ).
— A situação em Canoas não é recente, são, ao menos, quatro anos neste cenário. Neste período, talvez tenha se tornado o principal problema da área da saúde no Estado — pontua Uberti.
Crise é a mais grave dos últimos anos, avalia Simers
O diretor do Simers acredita que para além dos problemas financeiros, a constante imprevisibilidade com trocas de comando na instituição prejudica a continuidade dos trabalhos. O sindicato espera que, com o avanço dos trabalhos da frente estadual, seja possível alcançar mais diálogo e transparência por parte do poder público.
— Entendemos a reclamação da prefeitura em relação aos repasses deficitários, mas esse é o cenário generalizado do SUS. Essa crise também tem como parte um componente forte de gestão, falta de transparência, entre outros — explica o diretor-geral do Simers.
Uberti conta que entre as consequências da crise que chegam ao conhecimento do sindicato, há casos de cirurgias canceladas, médicos pedindo desligamento por estresse excessivo no ambiente de trabalho, além da falta de medicamentos e equipamentos básicos.
Prefeitura responsabiliza redução de repasses estaduais
Para o secretário de Saúde canoense, Felipe Martini, o principal problema enfrentado pelos hospitais da cidade é a falta de recursos públicos. Segundo o titular da pasta municipal, o programa Assistir, da Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS), retirou cerca de R$ 1,5 milhões mensais que são redirecionados para o Interior.
A ideia do Assistir é possibilitar mais atendimentos em instituições do Interior, reduzindo viagens até hospitais de referência na Região Metropolitana. Entretanto, para isso, o governo estadual readequou verbas, o que diminuiu a quantia destinada para a Grande Porto Alegre.
— Canoas investiu 27,5% do seu orçamento deste ano em Saúde. E isso deve chegar a 30% até o fim do ano. Em 2024, a previsão orçamentária da Saúde é de 34%, isso é insustentável para uma cidade — aponta Felipe.
O secretário reconhece que há problemas com demandas represadas, como as filas de traumatologia, ortopedia, além cirurgias gerais e vasculares. Ele conta que o governo canoense aderiu ao programa nacional de redução de filas de cirurgia, o que deve garantir cerca de R$ 7,5 milhões até o fim do ano — sendo que R$ 2,5 milhões já foram repassados. Ainda assim, o governo trabalha para evitar novos cortes do Assistir.
— Estamos nos reunindo com a SES-RS para evitar que a redução dos repasses dobre, que era o planejado pelo Estado para o próximo ano — explica Felipe.
Além dos mutirões, repasses e participação em programas federais, Martini ainda cita a busca por "quadros mais qualificados para os cargos de gestão do HU". E em relação à vistoria do Cremers, o secretário diz que vê com bons olhos a situação, pois servirá para ajudar a demonstrar como o problema não é um descaso da cidade:
— Não é desatenção nossa, Canoas nunca investiu tanto na Saúde como agora. Mas é preciso a ajuda do Estado.
SES-RS diz que remunera serviços prestados
Em nota, a pasta estadual da Saúde informou que realiza o repasse do programa Assistir "no valor de R$ 7,7 milhões mensais destinados ao Hospital de Pronto Socorro de Canoas e Hospital Universitário de Canoas". Segundo a pasta, o Assistir "remunera a prestação de serviços efetivamente executados".
A secretaria acrescenta que "Canoas não ofertou novos serviços de ambulatório para ampliar a produção". A SES-RS defende que com a medida do Assistir, "a população de cidades do Interior passou a ter atendimento próximo de suas casas, e não precisando deslocar para grandes metrópoles, como na Região Metropolitana".
A SES-RS ainda acrescentou que "Canoas faz parte de um grupo de trabalho que já realizou quatro reuniões nos últimos dois meses e está avaliando a produção das estruturas para equilibrar recursos, conforme os critérios técnicos de entregas de serviços para a população".