Apesar do aumento no número de transplantes no Brasil entre janeiro e agosto deste ano, a falta de conscientização sobre doação de órgãos segue sendo um grande problema. Além disso, o procedimento representa um desafio à parte quando envolve o coração. Algumas pessoas com insuficiência cardíaca avançada não podem realizar esse tipo de cirurgia — nesses casos, um implante tecnológico é uma alternativa que oferece boa qualidade de vida. Ambos os temas estão sendo discutidos por especialistas durante o 78º Congresso Brasileiro de Cardiologia, que ocorre até este sábado (30) em Porto Alegre.
O principal desafio relacionado aos transplantes no Brasil é fazer com que o procedimento esteja presente em todos os Estados, afirma Jacqueline Miranda, coordenadora do Departamento de Transplantes do Instituto Nacional de Cardiologia no Rio de Janeiro e coordenadora de Transplante Cardíacos nos hospitais da Rede D'Or.
— São 43 equipes e ainda temos um vazio em vários locais do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste. Então, quando olhamos o mapa do Brasil, vemos que o transplante é bem litorâneo, acho que temos um vazio para o interior do Brasil. Isso não quer dizer que os pacientes não consigam ser transplantados, porque temos programas do Ministério da Saúde que trazem esses pacientes para outros centros, mas isso deveria ser diferente, porque certamente aumentaria o número de cirurgias se aumentasse a quantidade de centros.
Fernando Bacal, diretor do Núcleo de Transplantes do Instituto do Coração (InCor) e coordenador do programa de insuficiência cardíaca e transplantes do Hospital Israelita Albert Einstein, também aponta o baixo aceite de doadores, que varia entre 10% e 15% — nos Estados Unidos e na Espanha, esse índice gira em torno de 40%.
Para aumentar a aceitação, Bacal, que foi um dos integrantes da equipe que realizou o transplante do apresentador Fausto Silva, diz que é preciso ter uma estrutura mais profissional na captação de órgãos e na manutenção dos doadores. Além disso, é necessário mostrar a seriedade do procedimento e incentivar a discussão entre as famílias.
— Se subirmos o número de aceite de doadores, acho que triplicamos a quantidade de transplantes. Transplantamos 400 pessoas no país, mas deveríamos estar fazendo 1,3 mil procedimentos do tipo, de acordo com um dado da Associação Brasileira de Transplante de Órgão. Portanto, entre 800 e 900 pacientes com insuficiência cardíaca grave não estão chegando ao transplante, por vários fatores — lamenta o especialista.
Jacqueline acrescenta que o índice de recusa familiar chegou a 49% no primeiro semestre, na contramão do aumento no número de transplantes: são dois procedimentos cardíacos por milhão de população, o maior número histórico desde que se começou a contar, segundo a médica.
— Então, vem crescendo, sim. A Sociedade Brasileira de Cardiologia tem feito um bom trabalho, mas poderia ser muito melhor se tivéssemos mais órgãos. Ainda temos pacientes que morrem em fila, ou seja, estou falando daquele paciente que conseguiu chegar no centro, ser atendido e colocado na lista, mas não recebeu um coração. Ainda temos uma mortalidade em fila elevada e com certeza tem a ver com a disponibilização do órgão — diz Jacqueline.
O coração é um dos órgãos mais complicados de se transplantar, em função do chamado tempo de isquemia. De acordo com Bacal, o período de transferência do órgão do doador para o receptor não deve passar de cinco horas, o que faz com que a logística seja mais difícil. Por isso, não se pode, por exemplo, fazer captações muito demoradas.
Mesmo assim, o especialista comenta que as cirurgias melhoraram muito e que, hoje, os transplantes têm 90% de sucesso, oferecendo uma boa sobrevida aos pacientes.
— Melhoramos a técnica cirúrgica, o entendimento do aspecto imunológico relacionado ao transplante e o controle de rejeição com novos medicamentos imunossupressores. Isso fez com que o resultado do transplante passasse a ser muito bom. Ele é a última alternativa, quando todas as outras opções clínicas e cirúrgicas foram esgotadas, e não há nada melhor do que o transplante. Ventrículos artificiais são grandes avanços, mas o transplante ainda é o ideal. A questão é que não tem órgão para todo mundo — afirma Bacal.
A especialista do Instituto Nacional de Cardiologia concorda:
— O transplante é a melhor maneira de tratar esses pacientes. O suporte circulatório mecânico é uma opção também, mas ainda não é tão bom quanto o transplante. Esperamos que a tecnologia evolua, mas ainda não evoluiu, então se a gente tem o melhor, que é o coração doado, acho que deveríamos gastar o recurso na capacitação da equipe, na expansão disso pelo país e em campanhas de conscientização da sociedade.
HeartMate como opção
Um coração artificial para quem não pode passar por um transplante. É dessa forma que Nadine Clausell, diretora-presidente do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), explica o HeartMate, que nada mais é do que uma bomba inserida na ponta do coração, quando o mesmo não consegue mais bombear o sangue.
— É o final do tratamento da insuficiência cardíaca avançada, quando o coração está dilatado, super fraco. Tem o transplante e quando não pode fazer o transplante por uma razão ou outra, tem essa alternativa tecnológica, que é o coração artificial. É uma cirurgia mesmo: abre o peito e coloca uma bomba, daí eles carregam a bateria e o controlador em uma bolsa. E eles têm autonomia o dia inteiro, para caminhar, fazer esporte e trabalhar — resume.
Nadine destaca que a insuficiência cardíaca é a doença mais comum na cardiologia e que a estimativa indica que 200 mil pessoas tenham essa enfermidade em nível avançado. Para esses pacientes, existem três opções: transplante, esses dispositivos, que são de alto custo e alta tecnologia, e paliação, em que os indivíduos são encaminhados até a morte.
Uma das pacientes que colocou o implante foi Juçara da Silva Prestes, 56 anos. Moradora de Ijuí, ela tinha um quadro gravíssimo de insuficiência cardíaca, com expectativa de vida de seis meses e passou pelo procedimento há cinco anos e meio, embora lamente que o aparelho não seja disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
— Sou uma paciente que não consigo fazer transplante, por várias questões. Então, eu só tinha uma opção, que era o HeartMate, e eu consegui colocar. Hoje, sou uma pessoa que tem uma vida praticamente normal. Eu caminho, faço fisioterapia e todos os afazeres de casa, dentro do meu limite. Tenho uma qualidade de vida muita boa, faço tudo que uma pessoa normal faz, claro que tenho minhas limitações, mas eu consigo ter uma boa alimentação, uma saúde mental muito boa e faço várias atividades — relata Juçara, que esteve no Congresso nesta sexta-feira (29), acompanhada de uma das filhas.