Após a pandemia dividir médicos a favor e contra o uso de cloroquina, azitromicina e outros medicamentos ineficazes contra a covid-19, quase 40 mil médicos autorizados a atuar em solo gaúcho votarão em 14 e 15 agosto para escolher a nova presidência do Conselho Médico do Rio Grande do Sul (Cremers).
As eleições ocorrem a cada cinco anos e, desta vez, refletem o acirrado clima de polarização que marcou a pandemia, no qual médicos chegaram a cortar relações com colegas que adotavam ou se recusavam a usar determinados remédios em pacientes com coronavírus. A despeito do fim do estado pandêmico, a divisão persiste entre profissionais da medicina.
A eleição ganha relevância porque o objetivo principal do Cremers é proteger a saúde da sociedade gaúcha ao supervisionar a prática médica em postos de saúde, clínicas e hospitais – diferentemente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), cujo objetivo principal é defender direitos e interesses desses profissionais.
Entre as atribuições, o Cremers fiscaliza o trabalho de médicos no Estado, conduz sindicâncias quando a população denuncia erros de tratamento, oferece cursos de educação continuada e realiza orientações éticas aos profissionais.
Quem deseja trabalhar como médico no Rio Grande do Sul é obrigado a solicitar autorização do conselho. Há 38.310 profissionais com registro ativo – com a anuidade paga por cada indivíduo, o Cremers gerencia um orçamento que, neste ano, é de R$ 46,6 milhões.
Além disso, o Cremers pode ter assento no Conselho Federal de Medicina (CFM). Portanto, a chapa eleita em solo gaúcho teria voz em discussões nacionais que definirão recomendações dadas a médicos de todo o Brasil.
Disputa na Justiça
As eleições para a presidência do Cremers são no estilo das norte-americanas: médicos votam em uma chapa com 20 conselheiros titulares e 20 suplentes. Se o grupo vencer, os integrantes escolhem entre si os cinco cargos da diretoria (presidente, vice-presidente e outros cargos de direção), que se renovam a cada 20 meses, dentro do grupo.
Atualmente, o presidente do Cremers é o médico Carlos Sparta, que busca a reeleição na chapa 1 e que é filho do ex-secretário da Saúde de Porto Alegre, Mauro Sparta. Mauro saiu da gestão de Sebastião Melo (MDB) para se dedicar à eleição no Cremers. A votação da classe médica, é obrigatória.
Três chapas estão na disputa. No fim de julho, os grupos participaram de um encontro promovido pelo Simers – haverá um debate na próxima quinta-feira (10). A votação ocorrerá, pela primeira vez, no formato 100% online.
Na semana passada, a chapa 1 chegou a pedir impugnação das chapas 2 e 3 por supostos problemas na inscrição. A Comissão Regional Eleitoral acatou o pedido, mas os coletivos entraram com recurso – eventual impugnação só ocorre após decisão final da Comissão Nacional Eleitoral, em Brasília, sem prazo definido para ocorrer. Até o processo transitar em julgado, a eleição ocorre normalmente.
Por nota, o Cremers afirmou que decidiu tornar o processo público para “evitar ruídos causados por terceiros”, mas destaca que “as chapas penalizadas estão exercendo seu direito de recorrer e, até a decisão final da Comissão Nacional Eleitoral (CNE), o pleito segue seu fluxo normal”.
Os vencedores assumirão a instituição a partir de 1º de outubro de 2023 e ficarão até 30 de setembro de 2028. GZH entrevistou representantes das três chapas para trazer, ao debate público, as propostas para médicos e sociedade gaúcha. Foram feitas as mesmas perguntas para assegurar a equidade no debate. Os entrevistados não necessariamente serão escolhidos para presidência do Cremers, caso a chapa seja eleita. Veja as respostas:
Carlos Sparta, representante da Chapa 1 – Cremers de Todos
Liste três mudanças que a chapa quer fazer na próxima gestão.
Vamos seguir na inovação, melhorando o receituário digital e colocando medicamentos controlados. Vamos criar prontuário digital e laudo de medicamentos especiais. Vamos também ampliar os investimentos em cursos de qualificação dos médicos, dar continuidade ao projeto Cremers Itinerante e aumentar a representação, na qual cada cidade com mais de 50 médicos terá dois delegados que representarão o município dentro do Cremers. Vamos combater a criação indiscriminada de novas escolas médicas, criando uma câmara técnica para acompanhar faculdades existentes com a participação de docentes, discentes e conselheiros do Cremers. E, como terceiro tópico, aumentar o departamento criado no ano passado contra o exercício ilegal da medicina.
Como você avalia a polarização na classe médica entre pessoas a favor e contra o uso de medicamentos como cloroquina, ivermectina e azitromicina contra a covid-19?
O mais importante que o Cremers deve fazer é manter o debate aberto, manter a autonomia profissional, fazer diálogos para verificar os trabalhos realizados e ter o maior embasamento possível para tomar a decisão. Naquele período, em que tínhamos muita dificuldade em lidar com os trabalhos e impedir a doença, o mais importante era preservar a autonomia médica e profissional.
Como a chapa pretende tornar o Cremers mais relevante na sociedade gaúcha?
Manter e fortalecer as parcerias já existentes com Ministério Público Estadual (MPE) e a vigilância sanitária. Em conjunto com essas entidades, é essencial proteger o cidadão de charlatães e não médicos atuando na área médica, que causam inúmeros malefícios à nossa população.
Tatiana Della Giustina, representante da Chapa 2 – Conexão
Liste três mudanças que a chapa quer fazer na próxima gestão.
Temos a prioridade de aumentar a conexão entre médicos gaúchos e o Cremers. Estamos também trabalhando pela carreira médica porque temos que construir um plano com remuneração compatível com os médicos que estudam tanto. Vamos também fazer uma interiorização do Cremers. A gestão atual, composta pela chapa da situação, a 1 e a 3, fechou muitas delegacias regionais no Interior e abriu canais virtuais de atendimento, fez itinerância para visitar esses locais. Mas temos a convicção de que, com isso, se perde a capilaridade. Não acreditamos em um Cremers torre de marfim que fique em Porto Alegre e que isso vá suprir as necessidades dos colegas que estão em todo o RS. Nossa chapa tem 40 pessoas espalhadas por vários municípios do RS, e essas pessoas exercem liderança e têm a certeza da falta. Também temos planos para o consultório do médico jovem, que sai da universidade sem noção do que é um consultório, se vale a pena ter pessoa jurídica, se cooperativismo é bom ou não, como se gere o consultório. Se temos pessoas satisfeitas trabalhando bem, teremos uma saúde melhor para todos. Vamos estimular a remuneração na residência médica também.
Como você avalia a polarização na classe médica entre pessoas a favor e contra o uso de medicamentos como cloroquina, ivermectina e azitromicina contra a covid-19?
Desde 2019, represento os médicos do RS no Conselho Federal de Medicina (CFM). Logo que veio a pandemia, elaboramos no CFM o parecer 4/2020 [que liberou o uso de cloroquina, ivermectina e afins contra a covid-19]. A pandemia trouxe uma doença desconhecida, muitos pensavam que era só uma gripe, depois as pessoas viram que não era só gripe e que a morbidade era muito grande. Numa doença onde não há evidências robustas, cada médico que atende seu paciente tem que ter autonomia para usar o medicamento, off label ou não, que ache interessante para o caso. O objetivo é salvar a vida do paciente, claro que com consentimento informado e todos os cuidados. O parecer do CFM, que eu participei da elaboração, foi um grande passo para garantir a autonomia do médico e do paciente num caso com esse.
Como a chapa pretende tornar o Cremers mais relevante na sociedade gaúcha?
O Conselho Regional de Medicina sempre foi relevante, porque é a entidade máxima da ética médica. É um tribunal de ética e tem a função de fazer os médicos terem orientação ética, de como agir com seus pacientes. Nossa intenção é evitar a política partidária que se infiltrou no Cremers a ponto de os conflitos de interesse serem inevitáveis, o que dá a sensação de que o Cremers não representa os médicos. Precisamos tornar o Cremers um órgão com a isenção que sempre teve e que represente valores fundamentais caros para todos nós.
Entrevista com Eduardo Trindade, representante da Chapa 3 – Pra frente Cremers
Liste três mudanças que a chapa quer fazer na próxima gestão.
O Cremers tem obrigação de normatizar, fiscalizar e ser o tribunal ético em relação à medicina. Temos obrigação legal de ganhar celeridade nos processos. Não pode uma sindicância durar cinco, seis, sete anos. Uma das propostas da nossa chapa é utilizar câmaras de conciliação e mediação para ganhar celeridade na análise do processo. Assim, perde-se a impressão da classe médica de que o Cremers é um órgão extremamente punitivo, e a impressão da sociedade de que a classe é corporativista. Além disso, queremos avançar na fiscalização da formação médica. Queremos atuar com um assento no Ministério da Educação quando tiver decisão de abrir novas faculdades de medicina no RS. Vê-se um aumento exponencial no número de faculdades de medicina e no número vagas, sem melhora de infraestrutura. A maioria das nossas faculdades tem estrutura hospitalar deficiente para atender à demanda dos alunos, não há o número adequado de equipes de medicina de família, vemos que o objetivo é lucrar, e não atender à sociedade. Outra questão, que precisa ser judicializada com o governo federal, é o programa Mais Médicos. Não se pode conceber no Brasil e no RS termos duas medicinas: uma com formação legalizada e outra com um médico que não sabemos a formação e que não validou o diploma. Ter médicos sem Revalida é um debate sagrado, não se pode abrir brecha dentro da lei.
Como você avalia a polarização na classe médica entre pessoas a favor e contra o uso de medicamentos como cloroquina, ivermectina e azitromicina contra a covid-19?
Foi um verdadeiro absurdo. Infelizmente, essa politização e ideologização aconteceram e não deveriam ocorrer dentro do consultório. Houve uma "grenalização" dentro da medicina. O conselho não atribui tratamento A ou B. Mas, infelizmente, a questão foi tão politizada que até questões judicantes foram colocadas, e essa politização envolveu a classe médica. Tratamentos devem ser discutidos na academia e nas sociedades de especialidades. É um absurdo a medicina ficar politizada. A medicina é uma ciência, com verdades transitórias. Não podemos achar que, por ser do partido A, prescrevo a medicação A, e por ser do partido B, prescrevo a medicação B. A medicina segue o método científico e seus rigores, não pode ser politizada. Repudiamos essa tentativa espúria de querer colocar cores político-partidárias dentro do conselho. Queremos um conselho que atue com isenção e sem conflitos de interesse, seja com a iniciativa privada, seja no setor público. Temos que atuar com isenção.
Como a chapa pretende tornar o Cremers mais relevante na sociedade gaúcha?
Temos que ampliar a questão das parcerias. Já estivemos à frente da direção do conselho entre 2018 e 2022. Podemos fazer termos de cooperação. Temos que combater o exercício ilegal da medicina. Como fazer isso na prática? Através de parcerias, como termos de cooperação com a Polícia Civil e o Ministério Público estadual. Cada vez mais, atendemos emergências com complicações causadas por outros profissionais da área da saúde que não têm formação adequada e atendem como médicos. Queremos também ter uma relevância ainda maior nas redes sociais, pois vemos muitas pessoas se autointitulando doutores quando confundem com o título acadêmico de doutorado de outras áreas da saúde. Além disso, queremos ter cada vez mais influência nos órgãos de decisão, como conselhos municipais e estaduais de saúde. Temos a obrigação de ter maior relevância e de sermos ouvidos nas questões que envolvem a saúde. Vimos absurdos como a sanção da ozonioterapia, certamente não foi ouvido um médico. Quando se trata de saúde, a classe médica, através do Cremers, deve ser ouvida. E, principalmente, precisamos melhorar. Lá em 2019, desenvolvemos as receitas digitais e fomos um Estado pioneiro, com mais de 5 milhões de receitas emitidas através da plataforma, graças à cooperação entre Cremers e Conselho Regional de Farmácia. Como faremos com a receita azul e amarela? Através de cooperação com a Anvisa e a Secretaria Estadual da Saúde. E a classe médica precisa ser ouvida, não pode ser dividida como está hoje. A classe médica sofreu uma fratura na pandemia por vínculos político-partidários. Agora, temos que buscar a união da classe.