Meses ou anos de rotina forçosamente modificada imprimiram marcas preocupantes na rotina das crianças. Ainda que o cenário pós-pandemia careça, e muito, de números que mostrem com precisão o aumento da dimensão do problema do excesso de peso e da obesidade, pode-se inferir que a situação que já era preocupante antes de 2020, quando tiveram início a crise sanitária do coronavírus e as restrições de circulação, piorou. Neste mês, entidades e especialistas promovem o Setembro Laranja, com o objetivo de chamar a atenção para o problema.
Médicos, mães, pais e professores percebem como a brusca redução da atividade física — ou até mesmo a passagem para o completo sedentarismo — transformou a rotina e o corpo dos pequenos. Dados do Ministério da Saúde apontam que, em 2020, entre os acompanhamentos realizados na atenção primária da rede pública, 15,9% dos menores de cinco anos e 31,7% do grupo de cinco a nove anos tinham excesso de peso — nessas duas parcelas, 7,4% e 15,8%, respectivamente, apresentavam obesidade. Considerando-se todos os indivíduos menores de 10 anos, estima-se que cerca de 6,4 milhões tenham excesso de peso, e 3,1 milhões, obesidade.
O cálculo do Índice de Massa Corporal (IMC), utilizado para adultos, também norteia a avaliação do peso infantil, mas especialistas consideram outros fatores relativos ao desenvolvimento, segundo Carolina Leães Rech, chefe do Serviço de Endocrinologia da Santa Casa e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Do começo da era da covid-19 para cá, o panorama se agravou, principalmente, de duas maneiras: crianças que não tinham sobrepeso passaram a ter, e aquelas que já estavam acima do peso ou obesas ganharam quilos a mais.
— O maior tempo de tela foi uma regra na pandemia. Muita inatividade, muita dificuldade para retomar (a prática de) uma hora de atividade física por dia — resume Carolina.
É muito mais do que uma questão estética. O excesso de peso e a obesidade na infância significam piora da saúde e risco de diagnósticos cada vez mais precoces de diabetes tipo 2, hipertensão e esteatose hepática (acúmulo de gordura no fígado), antes doenças associadas a fases posteriores da vida. O alerta é do endocrinologista pediátrico Fabiano Sandrini, da Comissão de Endocrinologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Endocrinologia (SBEM).
— A grande maioria das crianças com excesso de peso serão adultos com excesso de peso. É muito difícil fazer essa redução quando criança, mas pior ainda na vida adulta. A infância é uma janela de oportunidade para que a gente consiga deixar uma herança mais saudável aos nossos filhos. Claro que há exceções, mas o aspecto com o qual você entrou na adolescência deve se manter na vida adulta. Este será um adulto jovem com gordura no fígado mais grave, diabetes tipo 2, hipertensão. Câncer é mais comum em pessoas obesas — ressalta Sandrini, também professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).
Carolina reforça esse discurso com uma estimativa assustadora: 85% das crianças hoje obesas serão obesas quando adultas. Quando classificada em estágio grave, a obesidade reduz a expectativa de vida em 10 anos. Para evitar, conter e reverter os danos, tudo começa pela adoção e manutenção de bons hábitos — movimento que deve envolver toda a família. Valorizar o momento das refeições é fundamental.
— Já havia a falta de uma rotina mais estruturada antes da pandemia. Abandonar o uso de telas é uma das coisas mais importantes. Fazer refeições em família, ter refeições mais naturais. O nosso combustível é a alimentação. É mais fácil abrir um pacotinho e botar no micro do que ir à feira e cozinhar. Não dá para colocar tanta porcaria para dentro — comenta a médica da Santa Casa.
A grande maioria das crianças com excesso de peso serão adultos com excesso de peso. É muito difícil fazer essa redução quando criança, mas pior ainda na vida adulta. A infância é uma janela de oportunidade para que a gente consiga deixar uma herança mais saudável aos nossos filhos.
FABIANO SANDRINI
Endocrinologista pediátrico
Desemprego, queda no orçamento doméstico, inflação. São inúmeros os fatores que podem dificultar a implementação de cardápios melhores. A população de classe média-alta é a que tem mais chance de se recuperar, aponta a pediatra Fabíola Isabel Suano, presidente do Departamento Científico de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Preste atenção ao que tem sido oferecido à mesa e no lanche escolar. Dar preferência a alimentos in natura e minimamente processados é essencial.
— Se é possível fazer esse investimento, faça. Comprar alimentos da estação ajuda na balança econômica. Prefira a compra em feiras, onde sempre haverá mais variedade. No supermercado, tem a rivalização com os produtos em pacotes — diz Fabíola, que também destaca que a iniciativa deve ser abraçada por todos em casa. — Tem que dar modelos positivos para os filhos. A criança vai entrar no hábito da família. Não existe criança obesa sem família que come mal.
Outro pilar essencial da transformação é a atividade física. Não é preciso matricular o filho em uma escolinha ou clube para a prática de esportes, ainda que as aulas programadas sejam uma boa escolha para quem deseja. Criança precisa de movimento, e o dia a dia oferece uma série de oportunidades: brincadeiras ao ar livre, jogos com bola, andar de bicicleta, passear com o cachorro, acompanhar os pais, a pé, na ida à padaria, ao supermercado, à feira, à farmácia.
— A pandemia fez com que as crianças ficassem paradas em casa. Elas não só ganharam peso como se adaptaram a uma realidade que é “não vou brincar na rua”. A principal atividade da criança é a brincadeira, encontrar amigos para fazer isso — orienta Sandrini.
Mesmo com a melhora da situação epidemiológica da covid-19, alguns hábitos mudaram a longo prazo ou até mesmo em definitivo, como mães e pais que passaram a trabalhar de casa e suprimiram parte dos deslocamentos. É preciso readaptar as rotinas, frisa o professor da Unioeste.
— Antes íamos ao parque passear, pedalar, e de repente se criou um hábito de ficarmos reclusos. Compramos tudo para deixar em casa — observa Sandrini.
Reconhecer o problema é o primeiro passo. A família precisa admitir que precisa de ajuda. O papel do pediatra é fundamental na condução desse processo. Se necessário, o médico pode indicar o acompanhamento por outros especialistas.
A percepção do excesso de peso e as restrições
Fabiano Sandrini, endocrinologista pediátrico da SBEM, salienta que a análise visual da criança é um indicativo importante, além do cálculo da massa corporal adequada e de outros fatores considerados pelo pediatra. Considerando-se uma criança e um adulto, em termos de composição corporal, ela deveria ser, em geral, mais magra.
— Uma criança de seis ou sete anos com aspecto do que seria normal em um adulto, encorpada, já tem um peso alto. Muitas vezes, os pais a enxergam como uma criança normal fortinha. Tem-se a ideia de que a criança doente é a magrinha. Até algumas décadas atrás, uma forma de demonstrar amor e carinho era dar uma comida extra. Acho que isso ainda persiste. É comum, no consultório, pais comentando: “Mas como não vou dar um bolo, um chocolate, uma bala para o meu filho quando ele pede?” O excesso de peso tem essa característica que as famílias não percebem, e os pediatras precisam interferir — fala Sandrini.
A conversa entre médico e familiares do paciente, relata o endocrinologista, pode enfrentar percalços:
— É muito comum os pais chegarem ao consultório por uma queixa ou outra, serem avisados do excesso de peso e dizerem que nunca haviam falado disso para eles. Também se cria um pouco de receio. Há dificuldade para falar a eles que a criança tem excesso de peso, alguém pode se sentir depreciado. Mas é muito importante pesar, medir. Nosso objetivo é prevenir a doença no adulto.
Sandrini afirma que estudos demonstram que o ganho excessivo de peso se inicia por volta dos quatro ou cinco anos. Isso não significa uma eternidade de privações — o sucesso está na moderação.
— Deixem salgadinhos e refrigerantes para datas comemorativas, festas de aniversário. Tomar um sorvete no final de semana é gostoso. Vamos a pé ou de bicicleta? Comer um bolo: vamos à padaria caminhando? — exemplifica o especialista. — Refeição é refeição: vamos sentar à mesa, desligar as telas. Tendemos a comer melhor — complementa.
Bons hábitos para toda a família
- Para prevenir ou tratar o excesso de peso e a obesidade na infância, toda a família precisa manter hábitos alimentares saudáveis. Crianças seguem o exemplo dos pais — os bons e os ruins. É pouco efetivo dizer para seu filho comer verduras e legumes se você não coloca essas opções no próprio prato. Faça um esforço, busque variedades, adapte-se.
- Adote horários regulares para alimentação e sono.
- Valorize o momento do café da manhã, do almoço e do jantar. O foco em de ser a refeição em família, à mesa. Desligue a televisão, deixe o celular de lado.
- Prefira alimentos naturais e reduza o consumo do que é comprado em embalagens. Evite bolachas, refrigerantes, bebidas açucaradas.
- É importante saber interpretar as informações dos rótulos dos produtos. Busque informações a esse respeito.
- Inclua frutas no lanche da escola. Se quiser mandar um suco de caixinha, compre a melhor opção possível. Há desde produtos com 100% de fruta na composição até aqueles que são, basicamente, puro açúcar.
- Não utilize comida como se fosse conforto ou prêmio. A comida saudável está mais cara, mas analise se não há excessos na compra de itens que não são essenciais.
- Habitua-se a oferecer água.
- Se tiver dificuldade para iniciar a implementar mudanças, procure ajuda. O pediatra que acompanha a criança pode dar boas orientações e, se necessário, encaminhar a outros especialistas.
Criança precisa de movimento
- O ideal é que a criança tenha, pelo menos, uma hora de atividade física por dia. A intensidade deve ser entre moderada e intensa.
- Não é preciso matricular seu filho em um clube ou academia para ter aulas formais. Para compor uma hora de movimento, vale correr, brincar na rua, pedalar, caminhar, andar de patins ou skate, jogar futebol ou praticar outro esporte com os amigos.
- Se, por algum motivo, a criança não pode brincar na rua ou no pátio, proporcione outras situações em que ela consiga encontrar seus pares para se divertir, como passeios ao parque ou à pracinha.
- Planeje programas em família em lugares que permitam e convidem ao movimento: praças, parques, ciclovias, quadras esportivas.
- O engajamento do pai e da mãe é necessário e sempre bem-vindo, mas se permita aliar atividades de seu gosto ao programa em família: enquanto as crianças brincam no parque, você pode ficar lendo em um banco próximo.