Caso de ampla discussão em março de 2021, o tratamento experimental com inalação de hidroxicloroquina diluída em soro para pacientes de covid-19 que vieram a falecer em hospital de Camaquã, sob aplicação da médica Eliane Scherer, prossegue com andamento em três frentes: cível, penal e ético-profissional.
O Ministério Público (MP) ingressou com ação civil pública, em abril de 2021, pedindo condenação da médica a título de dano moral coletivo. A médica tornou-se ré e o caso tramita em segredo de justiça, em fase de produção de provas e pedidos da defesa e da acusação para depoimentos de testemunhas em juízo. A promotora Fabiane Rios fez pedidos liminares na tentativa de impedir Eliane de atuar temporariamente no hospital de Camaquã e de aplicar a inalação da hidroxicloroquina em pacientes do SUS, o que foi rejeitado em primeira instância. O MP recorreu e, conforme a própria defesa de Eliane, a decisão de segunda instância impediu a profissional de ministrar o tratamento em enfermos do SUS. Esse é o procedimento cível.
Na esfera criminal, a Polícia Civil concluiu inquérito, em 12 de maio deste ano, com encaminhamento ao Judiciário sem indiciamento. A delegada Vivian Sander Duarte diz que não foram encontrados elementos para o indiciamento. Ou seja, não foi visualizada conduta criminosa. O MP ainda será intimado a se manifestar, podendo concordar ou não com as conclusões da Polícia Civil.
Por fim, uma sindicância para apurar eventuais infrações ético-profissionais corre na 4ª Câmara do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers). O órgão afirma que o procedimento tramita em sigilo e está em fase de julgamento.
Entre 22 e 24 de março de 2021, três pacientes nebulizados com o fármaco tiveram óbito confirmado pelo Hospital Nossa Senhora Aparecida, de Camaquã. Um dos falecidos tinha quadro estável, sem necessidade de entubação ou internação em UTI até aquele momento. Foram pouco mais de 14 horas entre o início das nebulizações e o falecimento, com registro de falta de ar e queda de saturação. Os outros dois mortos já encontravam-se em situação de saúde mais grave, ambos com entubação e ventilação mecânica. Na ocasião, a direção do hospital evitou fazer conexão direta entre as mortes e o tratamento experimental. A direção-técnica do hospital disse que o tratamento estava “contribuindo para a piora dos pacientes porque todos os casos de óbito apresentaram reações adversas após o procedimento”.
Não há comprovação de eficácia no uso da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19, mas os protocolos de saúde vigentes naqueles dias permitiam o seu uso pela via oral como tentativa de combater o vírus. A nebulização do fármaco não encontrava guarida nos protocolos e era aplicada em descompasso com a bula do medicamento.
O caso ganhou ampla repercussão a partir de 19 de março de 2021, quando o presidente Jair Bolsonaro pediu para comentar ao vivo, em uma rádio de Camaquã, sobre o tratamento experimental feito por Eliane. O presidente elogiou a técnica e defendeu a liberdade dos médicos para adoção desses procedimentos. Na ocasião, estava sob discussão o caso de um vereador da cidade de Dom Feliciano que foi à emergência do hospital de Camaquã em busca de atendimento. O caso dele não era considerado grave, sem necessidade de internação em UTI ou entubação. Eliane aplicou a nebulização no vereador e, depois da alta, vieram manifestações públicas de que isso teria salvo a vida do homem. Outros profissionais que atuaram no caso discordaram, afirmaram que não era possível estabelecer conexão e que ele recebeu outras medicações durante a estada hospitalar para tratar a covid-19, como antibióticos e corticóides.
Eliane era contratada para atuar no pronto-socorro do hospital de Camaquã e foi demitida no dia 10 de março de 2021, antes das repercussões. A direção justificou a decisão como consequência do tratamento experimental e de atritos com os outros médicos responsáveis pelos leitos clínicos e pela UTI que não concordavam com os seus métodos. Eliane supostamente teria tentado ministrar o tratamento experimental para pacientes internados em setores de maior complexidade, onde não tinha atribuição para atuar.
Apesar do desligamento, a profissional continuou ministrando o tratamento experimental para alguns pacientes da ala privada do hospital que declararam tê-la como médica de referência. Para o SUS, era possível que ela assumisse o tratamento de pacientes que conseguissem autorização judicial, mesmo sem ela ter vínculo empregatício com o hospital. Os enfermos passaram a assinar um termo de conciliação informando que pretendiam aderir à nebulização de hidroxicloroquina.
A direção do Hospital Nossa Senhora Aparecida ingressou, em 22 de março de 2021, com denúncia no Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) contra a médica. Dentre os motivos citados pela instituição, estão 17 infrações éticas supostamente cometidas.
O hospital alegou que Eliane ministrou a nebulização em um paciente em ambiente aberto, e não de isolamento, sem os equipamentos adequados, o que pode ter colocado outros enfermos e funcionários em risco. A direção ainda disse, entre outras denúncias, que a médica levava para dentro do hospital seringas trazidas de fora, com um líquido já contido no seu interior, o que seria contra os procedimentos tradicionais.
Defesa
Defensor da médica Eliane Scherer, o advogado Flávio de Lia Pires considerou acertada a decisão da Polícia Civil de remeter o inquérito recentemente ao Judiciário sem indiciamento.
— São casos em que não há nexo causal entre a atividade da doutora Eliane e o resultado. Isso é fundamental para a ação penal. O que se estava investigando era um possível homicídio culposo, mas não havia nexo causal e essa decisão era a esperada. É próprio que a polícia não tenha indiciado — avalia Lia Pires.
Sobre a ação civil pública movida pelo MP, com pedido de condenação por dano moral coletivo, o advogado considera a iniciativa imprópria. Ele avalia que os tratamentos experimentais foram realizados em uma relação particular entre médico e paciente. Ele sustenta que não houve aplicação disseminada. Na visão do defensor, isso prejudica o pedido do MP de dano moral coletivo.
— A doutora Eliane atendeu pacientes particulares com esses tratamentos. Não era rede pública. Alguns tinham determinação judicial a pedido dos familiares para fazer o tratamento. E ela fez nessa condição, como paciente particular, com autorização expressa. A ação civil pública trata o caso como se fosse algo disseminado no SUS, o que não procede. A ação é imprópria porque era uma relação particular entre médico e paciente — afirma Lia Pires.
Sobre a sindicância no Cremers, a defesa comentou apenas que trata-se de uma análise sob aspectos técnicos da medicina.
Dos três pacientes que fizeram a inalação de hidroxicloroquina com Eliane e, depois, vieram a óbito, a defesa nega que um dos casos tenha efetivamente ocorrido. Conforme o hospital informou à época, uma paciente fez nebulização de hidroxicloroquina com a médica em 21 de março de 2021, à tarde. No mesmo dia, à noite, uma decisão liminar autorizou Eliane a fazer o tratamento experimental, desde que ela assumisse a assistência integral ao enfermo, e não somente fizesse as nebulizações e deixasse os demais procedimentos com outros médicos. Após o despacho, Eliane informou que não teria como assumir o paciente integralmente. Um dia depois da nebulização, a paciente morreu, sofrendo taquicardia antes do óbito.
A defesa de Eliane nega que ela tenha feito uma sessão de inalação com essa vítima antes da liminar judicial.
Lia Pires ainda informou que sua cliente deixou de fazer o procedimento desde maio de 2021. No dia 11 daquele mês, o Conselho Federal de Medicina (CFM) anunciou que a inalação do fármaco somente poderia ser feita por meio de protocolos de pesquisa aprovados pelo sistema de Comitês de Ética em Pesquisa e Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP).