Com a decisão do governo Jair Bolsonaro de declarar fim do estado de emergência sanitária por coronavírus no Brasil, anunciada no domingo (17) pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, 172 portarias publicadas pelo Planalto ao longo da pandemia serão revogadas. Estados e municípios ainda não têm dimensão do real impacto a partir de agora.
A consequência mais imediata, no entanto, é que a CoronaVac não será mais fornecida como primeira dose para adultos, informou Queiroga na manhã desta segunda-feira (18).
O imunizante foi aprovado apenas para uso emergencial, e não definitivo, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) - e o fim do estado de emergência exige apenas o uso de produtos aprovados para uso definitivo.
O Ministério da Saúde solicitou que a Anvisa libere por um ano a CoronaVac para todos os públicos, mas irá restringir a oferta somente para crianças e adolescentes de seis a 18 anos e para a segunda dose atrasada de adultos que tomaram a primeira com o imunizante do Butantan. Pfizer, Janssen e AstraZeneca receberam liberação para uso definitivo, portanto não serão impactadas com a medida.
— Mais de um ano após, não se colecionaram evidências científicas suficientes para a CoronaVac ter registro definitivo. Esse imunizante pode ser usado para o esquema primário na faixa etária compreendida entre cinco e 18 anos. Esse registro emergencial, o Ministério da Saúde pleiteou à Anvisa que mantivesse, mas é uma decisão da agência regulatória. Se a Anvisa autorizar, essa vacina pode ser usada em crianças e adolescentes — disse Queiroga.
Os medicamentos sotrovimab, evusheld e paxlovid possuem apenas autorização da Anvisa para uso emergencial, mas o Ministério da Saúde também pediu extensão de um ano para uso desses remédios.
Gastos com covid
A medida mais criticada por secretários estaduais e municipais da Saúde é o fim de repasse de verbas específicas, pelo governo federal, para Estados e prefeituras combaterem a covid-19.
A Espin (Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional), implementada em fevereiro de 2020, deu margem para o governo federal extrapolar os gastos previstos pelo Ministério da Economia a fim de enviar dinheiro para fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS).
Com a verba, gestores locais contrataram médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e técnicos para trabalhar em hospitais, aumentar o horário de funcionamento de postos de saúde e criar tendas de atendimento.
O secretário-executivo do Conselho dos Secretários Municipais da Saúde do Rio Grande do Sul (Cosems-RS), Diego Espindola, diz que um risco é de que prefeituras demitam funcionários contratados de forma emergencial e deixem de abrir postos de saúde à noite ou no fim de semana para realizar testes de covid-19 ou aplicar vacinas, por exemplo.
— Pode ser que algum município tenha que diminuir a força de trabalho. Alguns fazem turno estendido ou mutirão de fim de semana para vacinação, muitos têm centro de covid ou unidades básicas de saúde atendendo especificamente a covid. Se tivermos diminuição de mão-de-obra de contratos emergenciais de algumas prefeituras, teremos sobrecarga de trabalho de trabalhadores da saúde. Talvez tenhamos que fazer remodelação, e alguns serviços de saúde para covid tenham que diminuir o horário e talvez fechar — diz o porta-voz do Cosems-RS.
O Conselho Nacional de Secretários Estaduais da Saúde (Conass) se preocupa com o fim do repasse de verba para a covid-19 em um momento no qual a doença se tornou rotina do sistema de saúde, com testes, exames, vacinação, monitoramento de pacientes e de variantes.
A entidade afirma que o fim do estado de emergência deveria ocorrer de forma paulatina, com prazo de 90 dias, para que Estados e prefeituras possam se adaptar à nova realidade.
O Conass ainda pede que o Ministério da Saúde defina o número de casos e mortes semanais por covid-19 é considerado “normal” e quanto é “descontrole”; avalie a capacidade instalada de Estados para responder à covid-19 e outras doenças; estipule meta de cobertura vacinal, que o Conass defende ser de 90% para cada faixa etária; e defina qual será a vigilância de casos e de variantes a ser feita a partir de agora.
— O SUS vai coexistir com uma quádrupla carga de doenças: as infecto-contagiosas já conhecidas; as metabólicas e crônicas; as causas externas, como acidentes, suicídios e violência; e agora a covid, com as sequelas da covid longa. Para tudo isso, precisamos de recursos financeiros. Precisamos recompor a capacidade de resposta do sistema de saúde — diz o presidente do Conass, Nésio Fernandes de Medeiros Junior, citando que pleiteará ao governo federal mais verba para o SUS.
A médica epidemiologista Anaclaudia Fassa, diretora da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), diz que a decisão do governo federal é precipitada e que o SUS precisa receber mais, e não menos verba do governo federal.
— O desfinanciamento do SUS é um problema muito grave. Tivemos redução à metade no número de médicos do país com o fim do Mais Médicos. A pandemia deixou o passivo da covid. Ainda temos que lidar com casos e internações de covid que continuarão acontecendo, tem a covid longa e um enorme passivo de cirurgias eletivas, monitoramento de doenças crônicas não transmissíveis, o cuidado materno-infantil, a dengue e o sarampo, que bate à porta. A gente precisaria reforçar o orçamento do SUS, e não o contrário — diz a professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
A situação da epidemia de covid-19 permite um relaxamento de medidas, mas o processo de transição precisa ser feito de forma controlada, diz o médico Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBim).
— Medicamentos com registro de uso emergencial e a CoronaVac, a única vacina sem registro definitivo, precisam ser olhados com cautela. Não podemos prescindir de medicamentos e dessa vacina em um cenário de circulação do vírus no qual são muito importantes essas estratégias. A situação permite que relaxemos medidas, mas com olhar na dinâmica da doença, que pode nos fazer rever medidas — diz Kfouri.
Queiroga afirmou que os serviços de telessaúde (consultas médicas a distância) serão mantidos porque a experiência “deu certo” na pandemia – a medida era criticada por entidades médicas, segundo as quais o atendimento dá margem para diagnósticos equivocados, o que poderia resultar em erro médico.
A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Porto Alegre afirmou que não foi notificada oficialmente da mudança e que não dimensiona, ainda, o real impacto da decisão. A Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul (SES-RS) informou que já não recebia verbas do governo federal desde janeiro, quando acabou o repasse para leitos públicos focados em covid-19 financiados pelo Ministério da Saúde.
GZH questionou a Procuradoria-Geral do Estado (PGE), que representa os interesses do Palácio Piratini, para questionar se a mudança afeta o uso de máscaras e outros decretos estaduais, mas a entidade diz que aguarda publicação do ato normativo do Ministério da Saúde para avaliar as repercussões no Estado.
A regra atual define que o uso de máscaras em ambientes fechados é obrigatório em cidades gaúchas, mas o Piratini dá liberdade para prefeituras desobrigarem o uso em qualquer ambiente, se publicarem decreto próprio.
O que muda no combate à covid com o fim do estado de emergência?
- Fim do uso de vacinas e remédios aprovados de forma emergencial, e não definitivo. É o caso da CoronaVac, que não terá mais utilização para esquema primário de adultos. A excepção é para crianças e adolescentes e para quem tomou a primeira dose de CoronaVac, mas não tomou a segunda – neste caso, a pessoa poderá tomar a segunda dose do imunizante do Instituto Butantan.
- Remédios aprovados de forma emergencial para uso contra a covid-19 devem ser liberados por mais um ano.
- Término de repasse de verbas para o combate à covid-19 a Estados e municípios - os valores já firmados, mas não repassados, serão transferidos até o fim.
- O status de emergência sanitária permitiu que Estados e prefeituras comprassem insumos sem licitação – como máscaras, álcool em gel e oxigênio –, o que dispensa burocracias e acelera o processo. Agora, não será mais possível realizar contratação simplificada, e as licitações voltam.
O que não muda
- Consultas médicas a distância serão mantidas no país.
- Em coletiva de imprensa na manhã desta segunda (18), Queiroga afirmou que o uso de autotestes comprados em farmácias, medida vinculada ao estado de emergência, devem ser mantidos – o Ministério da Saúde fará o pedido à Anvisa.
- A mudança não deve alterar o número de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) no país. No início do ano, o governo federal já havia decidido que enviaria verba para leitos intensivos em uso por qualquer tipo de paciente, sem especificar se a doença para internação era covid.