O Brasil completa nesta segunda-feira (20) 10 dias sem estatísticas oficiais de novos vacinados e de casos leves de covid-19, após ataque hacker a sistemas do Ministério da Saúde. A invasão chegou a desestabilizar o sistema de dados de hospitalizações e mortes por covid-19, mas o acesso foi restaurado para gestores públicos.
A situação impede que se tenha real noção sobre o cenário atual e a consequente tomada de decisão. Há 10 dias, o Rio Grande do Sul artificialmente estagnou em 70% da população com duas doses. O Estado também não sabe como está o avanço no número de casos de covid-19 processados em farmácias e laboratórios privados (em geral, casos leves). Também está fora do ar o conecteSUS, para emitir certificado de vacinação.
O ataque ainda impede equipes do Sistema Único de Saúde (SUS) de contatar pessoas com segunda ou terceira dose atrasada e de realizar busca ativa de indivíduos que convivem com caso confirmado para covid-19 e que poderiam ser testados gratuitamente, diz o Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Rio Grande do Sul (Cosems-RS).
A Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul (SES-RS) informa que a falta de acesso ao e-SUS Notifica “implica represamento dos registros de novos casos de síndromes gripais leves (sem hospitalizações) ou a edição das que já foram notificadas e aguardavam resultado”. Isso faz com que “haja menor volume de casos a serem publicados diariamente no painel da SES”, diz a pasta.
Há 10 dias, servidores precisam preencher manualmente as informações em papel ou programas de informática para inseri-los no sistema do Ministério da Saúde quando isso for possível. “Municípios e prestadores de serviço (postos de saúde, clínicas, laboratórios e farmácias, por exemplo) estão orientados a manter esses registros e atualizações em paralelo (fichas em papel, nuvem, rede de computador própria ou sistemas próprios) para posterior alimentação do e-SUS”, acrescenta a Secretaria Estadual da Saúde.
Em relação aos casos de hospitalização e mortes, monitorados pelo sistema Sivep-Gripe, o Estado afirma que ficou sem acesso entre 12 e 14 de dezembro, mas que o registro já voltou ao normal. “Publicação, edição e notificação de internações e óbitos estão ocorrendo normalmente desde então”, diz a SES-RS.
O presidente do Cosems-RS, Maicon Lemos, afirma que o apagão de dados vem “na pior hora possível”: chegada da variante Ômicron, antes das festas de Natal e Ano-Novo e do fim do ano fiscal, quando é preciso planejar a compra de vacinas para o ano que vem.
— O planejamento de compra de novas vacinas pelo Ministério da Saúde depende do monitoramento da adesão à vacinas. Em 2022, quantas vacinas de reforço faremos? Minimamente, duas. Mas, para isso, precisamos saber qual percentual está avançando na vacinação. O país se organizou para produzir inclusive certificados digitais de vacinação, baseado em um sistema que, de uma hora pra outra, sofre ataque de hackers — diz o presidente do Cosems-RS.
Em Porto Alegre, a utilização do sistema federal em paralelo com um programa municipal, o Gercon, permite que a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) monitore, ao menos, cerca de 60% dos casos leves de coronavírus, afirma Raquel Rosa, chefe da Equipe de Vigilância de Doenças Transmissíveis. A vacinação, como no resto do país, está às escuras.
— A situação é bem complicada, afeta nosso trabalho. O que mais nos preocupa é o monitoramento de casos leves, porque as unidades de saúde não conseguem monitorar as famílias (que convivem com um caso positivo de coronavírus). Temos a Ômicron, daqui a pouco a coisa ficará mais espalhada e não conseguimos ir atrás dos contactantes — diz Rosa.
Enquanto os sistemas do Ministério da Saúde não voltam a funcionar, a prefeitura adota medidas paliativas: pede que farmácias e laboratórios que realizam testes de covid-19 guardem os dados de novos casos leves e os informe ao município por e-mail diariamente - uma forma de evitar que o governo fique no escuro até o Ministério da Saúde resolver a invasão hacker.
— Se o Ômicron crescer, pode voltar a ter surtos, mas não vamos conseguir monitorar porque não temos o dado. E, na vacinação, não conseguimos buscar os "faltosos" de segunda e terceira dose — acrescenta Rosa.
A queda nos sistemas também impede que autoridades saibam diferenciar se há aumento de casos de covid-19 ou de influenza H3N2, com sintomas parecidos, destaca Marcelo Gomes, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do Infogripe.
— Hoje, o Brasil não sabe como está em casos leves e vacinação. Iniciativas parceiras, como o Infogripe, que fornece análises e para as Secretarias Estaduais de Saúde, continuam sem acesso. Os sistemas (que caíram) permitem identificar se está tendo mais caso de covid ou de influenza. Os dois estão aumentando? Um só? Ter um surto de influenza ou de covid é distinto na forma como tem que se preparar — resume o especialista.
O cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19, destaca que monitorar o aumento de casos leves em meio à chegada da Ômicron é fundamental:
— Indicador de casos leves é de plantio e de hospitalizações é de colheita. Pode ser tarde demais agir se acompanharmos só colheita e não plantio. Quando o indicador de hospitalizações aumenta, já há surto e pessoas infectadas. E, na vacinação, a gente não sabe a velocidade de aplicação de doses. Se estagnou, podemos ficar iludidos de que a cobertura parou de subir. Na Áustria, a velocidade de cobertura de duas doses cresceu quase 40% em 70 dias. Nos 70 dias seguintes, cresceu só 5% a cobertura vacinal — exemplifica.
Questionado se há previsão para retorno dos sistemas, o Ministério da Saúde não respondeu até a publicação desta reportagem.