Com o avanço da vacinação e a redução de novos casos, hospitalizações e mortes por covid-19, analistas começam a entender que o pior da pandemia já passou no Brasil. Um novo cenário se desvela: possivelmente, conviveremos com o vírus em menor transmissão. Mas que metas é preciso atingir para dizer que a pandemia virou página do passado?
A resposta mais sucinta é: não existe regra universal — cada governo opta por flexibilizar as restrições com segurança conforme indicadores locais demonstrem que há pouquíssimos novos casos, hospitalizações e mortes.
A Dinamarca liberou todas as restrições após vacinar com duas doses 85% da população. Portugal suspendeu o uso obrigatório de máscaras, apenas em locais abertos, em setembro — após mais de 80% dos habitantes completarem o esquema e as taxas de casos e mortes passarem por queda expressiva. Inglaterra, Israel e Estados Unidos retiraram o uso de máscaras com patamares menores de cobertura vacinal e tiveram de voltar atrás após nova onda de covid-19.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) diz, genericamente, que a pandemia (coronavírus a nível global) acabará quando a doença for controlada em diferentes regiões do planeta — aí, se transformará em epidemia (restrita a algumas nações). Para o Brasil, o esforço é para que se transforme em endemia.
E o que é uma endemia? A OMS cita que, se a covid-19 seguir em patamares “controlados” ou “normais”, se tornará endêmica — assim como a gripe H1N1 ou a febre amarela. Mas a definição do que é um patamar “normal” não tem consenso.
— Pandemia e epidemia são a mesma coisa: aumento de casos de uma doença em relação ao esperado. No planeta (chamado de pandemia) ou em uma região específica (epidemia) — explica o médico Alexandre Zavascki, infectologista no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— Já a endemia é a ocorrência da doença em taxas esperadas. Mas não existe critério rígido para isso. É como na malária, mais presente em alguns locais e em outros, não. Poderemos ter endemia com transmissão alta, muito baixa ou controlada. Isso ficará diferente em cada local — complementa o profissional.
O virologista Fernando Spilki, coordenador da Rede Corona-Ômica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e professor na Universidade Feevale, lembra que a OMS decretou o fim da pandemia da gripe H1N1 quando o número de novos casos e mortes se assemelhou ao da gripe comum — hoje, a própria H1N1 é entendida como gripe comum.
Para ter uma ideia do que isso representa, de janeiro a novembro de 2019, o Rio Grande do Sul registrou 442 casos e 70 mortes pela gripe influenza, conforme dados da Secretaria de Estado da Saúde (SES-RS). No Brasil, eram cerca de 2 mil mortes por ano. Isso com remédio e vacina disponíveis.
— Chegará o momento, imaginamos que nos próximos meses, em que mesmo regiões metropolitanas terão dias sem casos reportados. Isso acontece com alto grau de vacinação e, portanto, baixo número de suscetíveis. Não é só declínio, mas uma fase sem notificação para determinada região. Caminhamos para uma flexibilização generalizada, em que seria possível conviver e derrubar outras barreiras, como máscaras, para que o controle se baseie exclusivamente na vacinação — afirma o virologista.
Referências
Indicadores existem, mas não são definitivos
O pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Marcelo Gomes, coordenador do Infogripe, cita dois indicadores considerados pela OMS e pelas agências reguladoras dos Estados Unidos e da União Europeia para guiar o entendimento de que uma doença está controlada: quando há, em uma semana, um acumulado abaixo de 5 novas mortes por 1 milhão de habitantes e de 10 novos casos semanais por 100 mil habitantes.
Dados desta quinta-feira (14) do Ministério da Saúde analisados por GZH mostram que o Brasil tem um acumulado semanal de 10,7 novas mortes/1 milhão de habitantes e 37,3 novos casos/100 mil. Já o Rio Grande do Sul registra na semana 10,6 novas mortes/1 milhão de habitantes e 48,1 novos casos/100 mil habitantes.
— Obviamente, o acompanhamento desse indicador depende da capacidade de testagem e monitoramento. Mas não existe uma regra, não está escrito em pedra. São balizas utilizadas como apoio e que indicam valores baixos de transmissão. E há a cobertura vacinal, que é importante. Se antes se falava em cobertura de 75% da população, hoje se trabalha com 90% ou mais, porque sabemos que as variantes que circulam atualmente são mais transmissíveis — afirma o professor da Fiocruz.
A febre amarela é endêmica no Brasil e, entre 2017 e 2019, enfrentou picos em algumas regiões, lembra a médica Flávia Bravo, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBim). A gripe também tem picos — em Estados com frio, como o Rio Grande do Sul, a doença aumenta no outono e no inverno, mas reduz no verão e na primavera.
— Quando você tem uma doença endêmica, há a possibilidade de surtos ou picos endêmicos. A gripe tem surtos, por isso fazemos vacinação anual. Hoje, a gente está com expectativa excelente, mas precisarmos ter mais vigilância para saber a duração de proteção das vacinas, porque isso pode determinar a necessidade de doses de reforço, além de vigilância genômica, para cuidar o surgimento de novas variantes — destaca Bravo.
Mutações
A cobertura em países pobres preocupa a OMS justamente pelo risco de surgirem novas variantes. Para evitar problemas, a entidade estabeleceu dois objetivos: vacinar 40% da população mundial até dezembro e 70% até a metade de 2022. Segundo o escritório do órgão nas Américas, a Opas, a maioria dos países no continente atingirá uma das metas e vacinará com duas doses 40% da população.
Mas, na África, há países com menos de 10% da população vacinada. O surgimento de novas variantes preocupa, mas o virologista Fernando Spilki explica que coronavírus não costumam ter grandes mutações.
— Os coronavírus mutam muito menos do que o vírus da poliomelite, os que causam resfriado ou o HIV. Mas a gente precisa conhecer essas mutações. O vírus não costuma evoluir para maior virulência (intensidade do dano causado), e sim transmissibilidade. Mas existe a possibilidade de haver virulência um pouco mais alta. Novas variantes podem surgir em locais com baixa vacinação, não só na África, mas também nos bolsões de não vacinados dos Estados Unidos — diz o virologista.
O médico infectologista Alexandre Zavascki destaca a necessidade de acompanhar novas variantes, mas entende que, caso surjam, elas não devem anular por completo a proteção gerada por vacinas. Ele compreende que o planeta não deve voltar à estaca zero, com fechamentos por completo, como visto desde o início de 2020. Além disso, farmacêuticas já desenvolveram vacinas — atualizá-las contra novas variantes, portanto, fica mais fácil.
— As variantes são uma preocupação, temos que vacinar todo mundo para controlar o problema. Porém, na eventualidade de surgir uma variante que escape da proteção contra infecção, ela dificilmente vai escapar da proteção dada pela vacina contra agravamento e morte — afirma o médico.