Implementada no Exterior para frear a covid-19, a vacinação feita com imunizantes diferentes vem se tornando cada vez mais alvo de discussões no Brasil. A medida, chamada de intercambialidade vacinal, ganha força em meio ao avanço da Delta - e está sendo estudada pelo Ministério da Saúde e pelo governo do Rio Grande do Sul.
O assunto voltou à discussão em um momento no qual a produção de AstraZeneca pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) está abaixo do esperado e no qual cada vez mais estudos sugerem que todas as vacinas, meses após a segunda aplicação, reduzem a eficácia, o que indicaria necessidade de terceira dose e consequente maior demanda por imunizantes.
Entre os pontos positivos da intercambialidade, estão evitar o atraso da segunda dose, controlar o avanço da Delta e, conforme sugerem alguns estudos, estimular ainda mais a resposta do sistema imune contra o coronavírus. Contra, no entanto, está a falta de estudos com número maior de voluntários e mais análises comparando o uso cruzado com o uso normal.
Nesta quarta-feira (25), o Ministro da Saúde confirmou a aplicação de uma dose reforço para idosos com mais de 70 anos e imunossuprimidos (pessoas que têm o sistema imunológico comprometido). A ação começa em 15 de setembro, preferencialmente, com uma dose da Pfizer, ou de maneira alternativa, com a vacina de vetor viral da Janssen ou da AstraZeneca, afirmou o MS.
No Brasil, a pasta também autorizou em julho o uso de duas vacinas diferentes apenas para poucas exceções. Grávidas que tomaram a primeira dose de AstraZeneca podem tomar a segunda de Pfizer. A opção também é oferecida aos raríssimos casos de pessoas que desenvolveram reação alérgica na primeira dose de algum imunizante.
Afora casos excepcionais, a orientação é seguir o Plano Nacional de Imunização (PNI) e completar o esquema com o mesmo imunizante, ainda que o Ministério permita outras decisões. "A recomendação da pasta é de que os entes federados sigam à risca as estratégias definidas em reunião entre representantes dos estados e municípios para que o esquema vacinal seja completo", diz a Saúde por e-mail.
A intercambialidade começa a ser adotada à revelia do que diz a União. O governo do Estado do Rio de Janeiro autorizou, na terça passada (17), que prefeituras apliquem a segunda dose da Pfizer para quem tomou a primeira dose de AstraZeneca se o município não possuir o produto da Fiocruz em estoque. Já na capital carioca, a prefeitura foi além e permitiu que qualquer pessoa que tomou a primeira dose de AstraZeneca receba a segunda aplicação da Pfizer.
A Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul (SES-RS) afirmou por e-mail que segue a recomendação do Ministério da Saúde, mas confirmou que avalia internamente o uso cruzado.
Neste momento, o Ministério da Saúde conduz um estudo para avaliar a duração da proteção da CoronaVac e a possibilidade de oferecer, a quem tomou duas doses dessa vacina, uma terceira aplicação da própria da CoronaVac ou da Pfizer, AstraZeneca e Janssen. Os resultados devem sair em novembro. O ministro Marcelo Queiroga declarou no dia 18 que a intercambialidade é possível, se a ciência atestar.
A medida é adotada em países com diferentes imunizantes. Nos Estados Unidos, quem tomou a primeira dose de Pfizer pode tomar a segunda de Moderna, e vice-versa. Nações como Reino Unido, França, Espanha, Canadá, Noruega e Alemanha oferecem, a quem tomou a primeira dose de AstraZeneca, a segunda de Pfizer. No Chile, a terceira aplicação de Pfizer é disponível a quem recebeu duas de CoronaVac, medida criticada por especialistas pela falta de evidências robustas.
Analistas destacam que há pesquisas sugerindo que o uso cruzado é positivo - a maior parte dos estudos foi feita no Exterior e envolveu AstraZeneca com Pfizer. No entanto, reconhecem que é preciso análises mais robustas, sobretudo com a CoronaVac.
Os estudos e o que está em debate
Os estudos apontam que a intercambialidade é segura. Uma pesquisa feita por cientistas da Universidade de Oxford e publicada na prestigiosa revista The Lancet mostrou que uma segunda dose de Pfizer depois da AstraZeneca teve, em intervalo de quatro semanas, mais resposta imune do que quem tomou apenas AstraZeneca. Houve mais casos de efeitos colaterais, como febre, mas nenhum grave e todos dissipados rapidamente.
Outro estudo, do Instituto de Saúde Carlos III, da Espanha, mostrou que a segunda dose de Pfizer após a AstraZeneca gerou de 30 a 40 vezes mais anticorpos do que uma segunda dose de AstraZeneca e provocou efeitos adversos dentro do esperado, que desapareceram de dois a três dias.
Não existe risco na intercambialidade, tranquiliza o médico Eduardo Sprinz, chefe da Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele observa que, como cada vacina tem uma tecnologia e estimula o sistema imunológico de forma distinta contra a covid-19, o uso cruzado é boa opção para elevar nossas defesas.
— Não existe evento adverso a mais, somente aquele associado à vacina tomada. Cada imunizante tem uma forma de estimular as defesas, então, do ponto de vista de anticorpo, é mais lógico estimular com uma vacina e depois com outra. Estudos de laboratório mostram que a intercambialidade entre Astrazeneca e Pfizer é, no mínimo, tão boa quanto duas delas. E o benefício de tomar CoronaVac e depois Pfizer ou Astrazeneca é superior a CoronaVac mais CoronaVac — afirma Sprinz.
A imunologista Cristina Bonorino, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e integrante do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), é contra a intercambialidade porque diz não haver estudos de qualidade o suficiente embasando a decisão. Se houver comprovação de necessidade da terceira dose, ela defende que os brasileiros tomem duas doses de uma nova vacina, começando o esquema do zero.
— A decisão de dar uma dose de uma ou de outra vacina não é realmente baseada em dados clínicos, mas em possíveis correlatos de proteção (estimativa de quantidade mínima de anticorpos necessária para estar imunizado), que na verdade não são consensuais. Existe alguma base científica para a intercambialidade, afinal o alvo da resposta é o mesmo. Mas a gente não deveria fazer isso sem um estudo clínico. As pessoas têm que fazer pressão é para receber a segunda dose de sua vacina — diz a imunologista.
Para produtos há mais anos no mercado, a recomendação é completar o esquema vacinal com a mesma vacina. Se não houver disponibilidade ou não sabendo qual foi a vacina aplicada, está permitida a intercambialidade, pontua o médico Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Com base nos estudos já existentes, ele é favorável à intercambialidade entre AstraZeneca e Pfizer, e vice-versa. Entre CoronaVac e outros imunizantes, Cunha diz ser necessário aguardar novos estudos, como o conduzido pelo Ministério da Saúde. O uso cruzado de vacinas, diz, é inevitável, sobretudo em países mais pobres, onde há escassez.
— Tem-se observado uma menor resposta com idosos e uma proteção por menos tempo. Isso preocupa por causa da Delta. E não é uma preocupação porque a CoronaVac tenha um problema, já que Israel dá a terceira dose para quem recebeu Pfizer. A questão é que temos poucos produtores de vacinas e uma inequidade no mundo. A intercambialidade vai acontecer inevitavelmente, especialmente em países mais pobres com menor acesso. Isso facilita a logística e para não haver atraso da vacinação — afirma o presidente da SBIm.
A biomédica Mellanie Fontes-Dutra, integrante do Comitê Científico do governo do Estado, afirma que os dados atuais e o uso em outros países levam a crer que o uso cruzado seria positivo no Brasil.
— Há alguns estudos principalmente focando na intercambialidade de AstraZeneca e Pfizer. E alguns países aplicam segunda dose da Pfizer para quem recebeu AstraZeneca. É seguro e gera resposta imunológica significativa, mas não temos ainda dados sobre impacto na efetividade. Pode ser interessante não só como estratégia de estimular o sistema imunológico de diferentes formas, mas também na flexibilidade de dar a segunda dose no tempo adequado mesmo se faltar dose no regime homólogo (doses iguais) — diz Mellanie, também coordenadora da Rede Análise Covid-19.
O que dizem os produtores das vacinas
A Pfizer afirmou a GZH por e-mail que não comenta estudos de terceiros e que "a utilização e disponibilização da vacina no país segue sob os critérios de recomendação do Programa Nacional de Imunizações". O Instituto Butantan afirmou que não conduz estudo sobre intercambialidade da CoronaVac com outras vacinas.
A Fiocruz enviou nota por e-mail na qual afirma que a intercambialidade deve ser usada apenas em caso de emergência e que, "embora existam dados potencialmente importantes sobre o uso de sistemas heterólogos de vacinação, não existem dados ainda sobre a duração da resposta imune com o uso de duas vacinas diferentes". Diz ainda que dados de vida real mostram que a proteção da AstraZeneca dura mais do que a de outros imunizantes.
A Fiocruz também afirmou que o adiamento da segunda dose da AstraZeneca é benéfico - cita estudo publicado na revista The Lancet mostrando que "a primeira dose pode sustentar uma eficácia de 80% por até 10 meses até a segunda dose e que esse intervalo poderia conferir uma resposta imunológica ainda mais robusta após o esquema vacinal completo".