Em 31 de julho do ano passado, quando o governo federal anunciou um acordo para produzir no país a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e comercializada pela farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca, era difícil imaginar que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a quem caberia levar a cabo a missão, iria se tornar alvo de críticas generalizadas e até de piadas entre cientistas e profissionais de saúde em razão de atrasos em série na entrega do imunizante e de previsões fantasiosas feitas por seus dirigentes.
Ao longo de seus 120 anos de existência, a Fiocruz construiu uma reputação irretocável no Brasil e no Exterior, pela qualidade de suas pesquisas, por sua atuação no enfrentamento de epidemias e pela eficiência na produção de diversas vacinas. A expectativa, portanto, era de que a Fiocruz liderasse a produção de vacinas contra o coronavírus, garantindo a agilidade necessária ao processo de vacinação, e adotasse uma postura ponderada em suas previsões de entrega, transmitindo à população um quadro realista sobre as perspectivas de imunização.
Ainda que o Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo, tivesse largado na frente na corrida pela vacina, ao negociar uma parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac para produção da CoronaVac, boa parte da comunidade médica e científica apostava que a Fiocruz, vinculada ao Ministério da Saúde, assumiria o protagonismo na luta contra o vírus.
Mas, passados 10 meses desde a assinatura do primeiro contrato com a AstraZeneca, o que se observa é que a Fiocruz desempenhou até agora um papel secundário no processo de imunização, apesar de ter turbinado a produção e as entregas de vacinas a partir de abril.
De acordo com números do Ministério da Saúde, das 46,4 milhões de doses de vacinas contra covid-19 já aplicadas em todo o Brasil até 6 de maio, incluindo a primeira e a segunda doses, só 11 milhões, o equivalente a 24% do total — ou uma em cada quatro — foram do imunizante Oxford/AstraZeneca produzido pela Fiocruz. O restante foi de CoronaVac. A vacina da Pfizer/BioNTech importada pelo governo, que começou a ser aplicada na semana passada, ainda não havia aparecido nas estatísticas oficiais.
A rigor, a participação das vacinas produzidas pela Fiocruz no total de doses aplicadas até o momento é ainda menor, já que 4 milhões de doses prontas de AstraZeneca foram importadas da Índia e estão somadas a sua produção no balanço do ministério. Descontadas as doses indianas da conta, o saldo de vacinas produzidas pela instituição e já aplicadas na população cai para 7,1 milhões, o equivalente a 15,3% do total ou uma em cada 6,5 doses administradas até agora no país.
Ainda que indiretamente, esse desempenho acabou prolongando o ciclo de contágio, ao limitar o processo de imunização nos primeiros meses do ano, e gerou frustração na população, ansiosa por se "blindar" o quanto antes contra o vírus letal, que já levou quase meio milhão de vidas desde o início da pandemia, em março de 2020.
"Melhor cenário"
Procurada para falar sobre a questão e outros temas ligados à produção da vacina contra a covid-19, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, não quis se pronunciar, alegando não ter "disponibilidade na agenda". O repórter insistiu, mostrando-se disposto a ajustar o cronograma da reportagem para incluir os comentários e explicações de Nísia, mas não recebeu mais resposta da entidade. Mesmo assim, a reportagem traz no texto abaixo as justificativas da Fiocruz e de seus gestores para a morosidade e os atrasos na produção da vacina, compiladas a partir de declarações e comunicados oficiais feitos nos últimos meses.
— Até agora estamos praticamente só com o Butantan — diz o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
— Quando o Butantan fez a parceria com a Sinovac e a Fiocruz com a AstraZeneca, todo mundo acreditava que a Fiocruz iria se dar melhor, mas o que acabou acontecendo foi o contrário — afirma o biólogo Fernando Reinach, autor do livro A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil.
Os resultados parecem ainda piores quando confrontados com as promessas feitas pelos dirigentes da Fiocruz, que desde o princípio anunciaram projeções muito elevadas para a entrega das doses, desmentidas seguidamente pelos fatos.
— Eles sempre tendem a prometer o melhor cenário possível, e na vida não é assim. Nunca acontece o melhor cenário possível — diz Reinach.
Logo depois da assinatura do contrato inicial, por exemplo, a Fiocruz chegou a falar na produção de 265 milhões de doses da vacina ao Programa Nacional de Imunização (PNI) em 2021. No fim do ano passado, porém, a previsão foi reduzida em 20%, para 210,4 milhões de doses — 100,4 milhões fabricadas com Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) importado da China e outras 110 milhões com IFA nacional, a ser produzido numa nova unidade industrial, que ainda está em construção.
Em janeiro, a Fiocruz anunciou a entrega de 50 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca até abril e manteve a previsão mesmo quando surgiram as primeiras dificuldades para cumpri-la. No mundo real, o número de doses entregues ao PNI no período ficou em 22,5 milhões, menos da metade. Em 5 de fevereiro, a Fiocruz prometeu entregar 15 milhões de doses em março, mas entregou só 2,8 milhões, o equivalente a 18,7% do prometido.
A entrega de vacinas com insumo nacional, inicialmente prevista para agosto, passou para setembro e agora dirigentes da Fiocruz já falam que só acontecerá a partir de outubro, comprometendo o cumprimento da meta do segundo semestre.
"Lambança"
"Promessas não cumpridas diminuem a credibilidade e a confiança nas instituições", afirmou o ex-ministro da Saúde Nelson Teich, que deixou o governo antes de completar um mês no cargo, por divergências com o presidente Jair Bolsonaro, em um comentário no Twitter.
— A gente fica nessa lambança de gerar um otimismo exagerado e de querer deixar a população mais tranquila, mas as informações precisam ter base na realidade — diz o senador Confúcio Moura (MDB-RO), presidente da comissão temporária do Senado que foi criada em fevereiro para acompanhar as ações contra a covid-19.
Um virologista que trabalha num centro de desenvolvimento de vacinas ligado a uma das principais universidades do país, que preferiu não ter sua identidade publicada, conta que as promessas não cumpridas da Fiocruz viraram tema de ironias e comentários maldosos em grupos de pesquisadores e cientistas no WhatsApp. Médicos de diferentes especialidades ouvidos pelo Estadão tiveram reação semelhante. Um deles chegou a defender a privatização da Fiocruz, para torná-la mais eficiente.
Segundo o virologista, "a grande falha" da entidade foi "vender ilusões" à população em relação à vacinação.
— A distância entre a expectativa criada e a realidade é absolutamente frustrante. A Fiocruz deveria ter admitido que a produção da vacina seria um processo muito mais moroso do que se acreditava — afirma.
Para ele, as falsas expectativas criadas pela Fiocruz tiveram efeito perverso no planejamento do processo de imunização:
— Quando você tem uma expectativa e passa a considerá-la como fato consumado, deixa de buscar alternativas, como a compra de mais vacinas prontas ou de mais insumo importado para envasar as vacinas aqui.
Responsabilidade "terceirizada"
Ao justificar os atrasos e as seguidas revisões nas promessas de produção da vacina Oxford/AstraZeneca, a Fiocruz "terceiriza" a responsabilidade pelos problemas. A instituição não admite ter sido excessivamente otimista em suas previsões ou subdimensionado os obstáculos que enfrentaria para cumprir o que prometeu desde o fechamento do acordo com a farmacêutica AstraZeneca, em julho de 2020.
Nos últimos meses, a Fiocruz e seus dirigentes apresentaram diferentes explicações para as revisões feitas nas projeções de produção e entrega de vacinas.
Segundo a entidade, o atraso na entrega das doses produzidas com insumo farmacêutico ativo (IFA) importado da China, cujo envio estava previsto inicialmente para dezembro e janeiro, mas acabou ocorrendo só em fevereiro, deveu-se a "dificuldades burocráticas e diplomáticas" para a liberação do produto na origem, em razão da falta de aval do governo brasileiro à operação.
Para explicar o adiamento da entrega das primeiras doses da vacina do começo de fevereiro para meados de março, a Fiocruz alegou que houve a quebra de uma máquina, com descarte indevido de vacinas, além do atraso no envio do IFA chinês. No caso do atraso da entrega de 4 milhões de doses prontas da Índia, praticamente só rotuladas pela Fiocruz, os dirigentes da instituição disseram que, além da repetição dos problemas enfrentados na China, o agravamento da pandemia no país acabou por retardar ainda mais a liberação da mercadoria.
O mesmo argumento foi usado para justificar o atraso no envio de mais 8 milhões de doses prontas da Índia, produzidas pelo Instituto Serum. "O problema da vacinação contra covid-19 não foi apostar em poucas vacinas, mas conduzir de forma ineficiente as negociações, o planejamento e a execução", afirmou Teich no Twitter.
Em relação ao atraso da produção de vacinas com IFA nacional, os dirigentes da Fiocruz dizem que ele vai se dar devido à "complexidade" da tarefa e à nova tecnologia que está sendo incorporada no processo. Inicialmente prevista para começar em agosto, a entrega das vacinas com IFA nacional agora só deve ocorrer a partir de outubro, de acordo com informações de gestores da Fiocruz e do próprio Ministério da Saúde.
Embora os dirigentes da entidade evitem falar sobre o assunto, o atraso na produção da vacina com IFA nacional também tem a ver com a demora para fechar com a AstraZeneca o acordo de transferência de tecnologia, cujas cláusulas estão em discussão desde o ano passado.
Além de tudo isso, boa parte do problema se deve à postura do governo na pandemia. A posição antivacina do presidente Jair Bolsonaro durante meses acabou dando uma contribuição decisiva para retardar a negociação de imunizantes e o processo de vacinação em massa no país.