Uma das vozes mais reconhecidas no Estado na análise de dados da pandemia, a estatística especializada em epidemiologia Suzi Camey compara o momento atual da covid-19 no Rio Grande do Sul a uma fina camada de gelo sobre a qual estamos caminhando e que pode se romper facilmente caso não haja uma mudança no comportamento da população. O alto risco do momento, aponta a professora, se deve à soma de dois fatores: o aumento expressivo de casos de covid-19 em meio à ainda elevada ocupação de leitos de UTI.
Professora da pós-graduação em Epidemiologia na UFRGS, Suzi integra, como convidada, o Grupo de Trabalho Saúde do Comitê de Dados estadual — especialistas que avaliam os indicadores no Estado e emitem os avisos e alertas de risco.
A professora lembra que, se a contágio não for freado a tempo, não restará alternativa que não fechar novamente a maioria das atividades econômicas e sociais.
Confira os principais trechos da entrevista:
Qual a situação da pandemia no Rio Grande do Sul hoje, em uma leitura geral dos indicadores?
Estamos andando sobre gelo fino e a chance de afundar é grande. É assustador. A gente ainda está com o crescimento de casos restrito a regiões. Temos visto aumento forte nas macrorregiões Norte e Missioneira, na macrorregião Sul o aumento não é generalizado, e na macrorregião Serra começa a aparecer crescimento consistente. E se a gente olha a macrorregião Vales também tem aumentado, especialmente na região de Cachoeira do Sul. Se a gente olha para o passado, é sempre um efeito dominó: começa em uma região e passa para outra até que atinge todo o Estado. Não teve nenhum momento do passado no qual três regiões tiveram aumento e isso não se propagou. A tendência é que o Estado acompanhe esse crescimento. E essa é a preocupação. Enquanto estávamos em queda, não conseguimos baixar o número de casos o suficiente para, em uma nova subida, termos tempo de evitar uma crise.
Quais os indicadores mais te preocupam hoje e por quê?
Dois indicadores em conjunto me preocupam muito. Primeiro, o aumento de casos. Com todas as limitações que pode ter esse indicador, ele já está apontando crescimento, e esse aumento sempre pode ser ainda maior. O outro dado que preocupa, em paralelo, é a ocupação das UTIs. A gente não conseguiu baixar o suficiente a ocupação das UTIs para ter uma folga. Ou seja, não podemos dizer que “podem crescer os casos que teremos ainda espaço para atender”. Temos já quatro das 21 regiões covid acima de 100% de taxa de ocupação geral de UTIs. E sete regiões covid com ocupação de UTIs acima de 85%. É muito preocupante. Para quem conhece rotina de hospitais, essa lotação significa esgotamento. E a gente tem várias regiões covid-19 nessa situação. E há uma macrorregião com potencial muito forte de causar danos que ainda não chegou neste estágio: a Metropolitana. Estamos já em uma situação crítica, e essa região ainda nem chegou a mostrar aumento expressivo. A menos que haja uma mudança grande de comportamento de indivíduos, será uma situação crítica em todo o Estado.
Nas últimas duas semanas, já percebemos aumento expressivo de internações clínicas por covid-19. Qual a sua avaliação sobre essa alta?
Quando começa a aumentar esse indicador significa que estou internando mais pessoas por covid-19 do que estou dando alta. São muitas novas internações, e internações são reflexos de pessoas infectadas. E isso acontece em um momento em que as doenças respiratórias se agravam, o inverno. São vários indicativos do momento crítico que estamos vivendo. Eu tenho um receio muito grande. É natural no inverno as pessoas quererem fechar as janelas, se proteger do frio. No ano passado, quando a gente enfrentou o inverno, a gente ainda tinha poucas pessoas infectadas, em comparação com os índices de hoje. Se ano passado as pessoas fecharam as janelas e isso não foi tão danoso, este ano será. As pessoas podem pensar “ah, eu fechei as janelas e não aconteceu nada”. A questão é que era um momento com muito menos pessoas circulando com o vírus.
Ventilação natural é a medida mais importante para evitar o contágio?
Temos um tripé forte de cuidados: máscara de qualidade e bem ajustada, ventilação e distanciamento. Quando se tem os três elementos de cuidado, a chance de contágio é baixíssima. Se tirar qualquer um dos três elementos de cuidado, aumenta muito o risco.
Nas últimas duas semanas, também aumentou bruscamente o indicador de relatos de sintomas de covid-19 no Estado, em pesquisa do Facebook com a Universidade de Maryland. Como você avalia esse dado?
É muito preocupante. Pois quando a gente olha para o passado não tivemos essa mesma aceleração tão forte e tão longa como agora. Vemos uma inclinação muito forte e já são 15 dias deste crescimento. Esse indicador (que é estadual) ainda pode estar sendo puxado por aumento em algumas regiões do Estado e, como trata de sintomas, pode ter uma mistura de pessoas sem covid-19. Mas, quando a gente olha para esse indicador no inverno do ano passado, a gente não teve essa inclinação que vemos agora. É preocupante.
O que mostram os indicadores de aumento de casos?
Sempre que a gente enxerga um momento de subida nos casos, tem que fazer algo para frear. Quando olhamos a incidência acumulada de casos, vemos que a curva está crescendo já há mais de 10 dias, mas ainda não está subindo em velocidade tão elevada. Os sinais de alerta estão ligados. A gente tem que lembrar que em fevereiro, antes de chegamos ao colapso de março, não havia nem mil pacientes com covid-19 em UTIs. Agora, estamos com uma inclinação menor na curva de casos, mas estamos partindo de 1,7 mil pacientes com covid-19 em UTIs. Partimos de um patamar mais alto. Qualquer subida neste momento é um risco alto. Qualquer deslize neste momento e a gente vai chegar muito mais rapidamente em uma situação crítica como foi março e abril. A boa notícia dos últimos dias é que a mobilidade da população está em tendência de queda no indicador comércio e lazer e transportes. O que me preocupa é que essa redução na mobilidade não está acontecendo no indicador “locais de trabalho”. Vemos empresas querendo que funcionários voltem a trabalhar presencialmente. O teletrabalho de todas as atividades deve ser mantido. O empregador deveria ser o primeiro a se comprometer com o teletrabalho. Todo mundo que pode ficar em casa tem que ficar. A pandemia está longe do fim. As escolas estão voltando por conta de uma necessidade grande de retomada dessa atividade, porque as crianças precisam das atividades presenciais.
Cada vez mais a gente depende do comportamento dos indivíduos. Não temos nenhuma sinalização no médio prazo de que a pandemia está acabando.
Os índices atuais de vacinação já são suficientes para reduzir drasticamente os contágios? O percentual de vacinados é capaz de frear uma nova onda?
Na minha avaliação, é o contrário. Com um número tão baixo de vacinados, a vacinação está dando uma falsa sensação de segurança para quem está vacinado e para para quem convive com vacinados. E isso está permitindo que o vírus circule mais. O vacinado, mesmo que não tenha sintomas tão graves caso se contamine, continua sendo um vetor de transmissão. A vacinação protege quem está vacinado de ter a doença grave, mas o vacinado é mais uma pessoa que pode transmitir o vírus de forma assintomática.
Que medidas são adequadas, neste momento, para garantir que não tenhamos uma nova onda elevada de casos, internações e mortes?
Cada vez mais a gente depende do comportamento dos indivíduos. Cada um tem que fazer a sua parte, tem que usar máscara, não pode sair encontrando as pessoas em ambiente fechado, sem ventilação, sem manter distanciamento. Eu sinto que as medidas governamentais chegam em um limite. Posso fechar atividades, mas se as pessoas continuarem se encontrando em suas residências, todo o esforço vai por água abaixo. A gente tem que comunicar para as pessoas que é preciso conviver com a pandemia. Não temos nenhuma sinalização no médio prazo de que está acabando.
Temos mais de um ano de pandemia, já. Por que a conscientização ainda não chegou?
Avaliando outras situações semelhantes como do cinto de segurança e do se beber não dirija: chega uma hora na qual o Estado precisa ter uma ação punitiva mais forte. Se a mudança não acontece naturalmente, o Estado tem que intervir. E é uma situação muito ruim, pensar em aplicar multa em um momento como este. Com o agravante que é mais difícil fazer essa punição, porque no caso do cinto é mais fácil perceber com um agente de trânsito e multar.
Se os alertas já emitidos não se refletirem ao longo desta semana em diminuição de casos, o Estado vai ter que adotar medidas mais duras.
Se novamente perdermos o controle da pandemia no Estado, teremos que fechar tudo de novo?
Sim, não tem outra saída. Se os alertas já emitidos não se refletirem ao longo desta semana em diminuição de casos, o Estado vai ter que adotar medidas mais duras. A minha impressão é de que parte das pessoas só muda o comportamento individual quando se fecha tudo. Alguns alertas já foram emitidos na semana passada. E agora a gente precisa ver se as medidas implementadas pelas regiões surtem efeito para reduzir a contaminação. Por exemplo, na região de Santo Ângelo, foi emitido alerta no dia 18, e desde o dia 19 a gente começa a enxergar uma estabilidade. Estabilidade não é suficiente. Então, se ao longo dos próximos dias a gente não enxergar uma queda nos casos, tem que voltar a conversar e implementar medidas.
Algumas prefeituras estão mantendo a maioria das atividades abertas, mas fechando escolas. Faz sentido?
Não, não tem nenhum nexo. Sob todos os pontos de vista isso é péssimo. As escolas são as primeiras que devem abrir e as últimas que devem fechar. As escolas, a principio, estão entre os locais que menos transmitem. É o ambiente que tem menos risco.
Quanto tempo há pela frente para reagir ao aumento de casos antes de perder o controle?
Não se pode esperar, essa situação não vai melhorar sozinha. Já é o momento de ter ações para tentar melhorar. No momento em que para de cair, a gente tem algum tempo. Ou seja, quando está estabilizado. No momento em que começa a crescer, tem que implementar medidas para reverter isso. O risco de uma nova subida ser exponencial é sempre muito grande.