O atual cenário da pandemia na Índia foi detalhado pelo médico brasileiro Francisco Paquet Santos em entrevista ao Gaúcha+ na terça-feira (6). Paquet nasceu no Paraná, mas atualmente trabalha em um hospital daquele país. Somando 1,4 bilhão de habitantes, a Índia, que é um dos países mais populosos do mundo, enfrentou bem a primeira onda do coronavírus em 2020, mas observou uma explosão de casos nas últimas semanas. Números oficiais registram mais de 20 milhões de infecções por covid-19 e cerca de 225 mil mortos, sendo 3.780 nas últimas 24 horas.
Confira alguns trechos da entrevista:
GZH: Como o senhor resume a situação na Índia?
Paquet: A Índia é um país bastante peculiar. A extensão territorial da Índia é quase três vezes menor que a do Brasil, mas a população é seis vezes maior. São 29 Estados com uma multiplicidade e uma diversidade bastante grandes. Alguns Estados e algumas cidades grandes estão realmente perto do colapso ou já em colapso. Porém, existe uma infinidade de cidades e Estados onde a situação ainda é de relativa calma, embora com muita expectativa de piora nos próximos meses, como por exemplo na região onde estou. Nesta região, não estamos perto de colapso, ainda não temos falta de leitos ou de oxigênio. Porém, em cidades a 300 quilômetros da gente, como na maior cidade do Estado, já está havendo dificuldades para encontrar leitos. Não está em colapso ainda, mas está com cerca de 99% de ocupação.
Temos visto cenas bastante tristes, como por exemplo a questão funerária, de colapso até mesmo nos rituais de despedida. O que o senhor pode contar sobre esses episódios?
Isso é verdade. Em cidades maiores, como Nova Délhi, Mumbai, Bangalore e Calcutá, você tem um índice de mortalidade muito superior e, provavelmente, assim como no Brasil, subnotificado. Na Índia, a opção dos hinduístas, que são mais de 80% da população, é de cremar o corpo, e as cremações são feitas normalmente à margem de um rio. Com isso, você observa o número de cremações e o número oficial de óbitos registrados por covid e começa a ter noção de que há realmente uma subnotificação. Os números são realmente assustadores, principalmente quando a gente projeta para daqui a duas ou três semanas. Nós tivemos, nesta semana, uma média de 300 mil a 400 mil novos casos por dia. Se a gente levar em conta o índice de mortalidade de 2%, a gente vai ter, daqui a duas ou três semanas, um índice de 7 mil a 8 mil mortes por dia, o que é realmente espantoso. Levando-se em conta a população de 1,4 bilhão, é algo compreensível, mas difícil de se aceitar, pois são 7 mil vidas humanas perdidas por dia.
Como está o trabalho do senhor no hospital?
Como é um hospital de medicina ayurvédica, o nosso foco é um pouco diferente do da medicina moderna. Nós estivemos atuando, até a semana passada, com ambulatório normal para as doenças crônicas e agudas que nós tratamos, nossas especialidades. Tratamos também pacientes de covid regularmente, mas normalmente não internamos. Porém, a partir da semana passada, com o aumento real de casos e a aceleração nesse aumento nas últimas três semanas, nosso hospital, que tem 50 leitos, está hoje com 12 pacientes covid positivos sendo tratados. Todos eles em estado que não é severo, pois aqueles que necessitam de UTI nós normalmente transferimos para o hospital moderno, que é do outro lado da rua.
O Brasil ainda enfrenta um momento muito difícil, mas que já foi pior, há algumas semanas. Na Índia já dá para apontar quais foram os erros que levaram a essa situação tão dura de agora?
Os fatores são diversos, mas a gente pode apontar alguns dos principais. Ironicamente, o relativo sucesso que eles tiveram em conter a primeira onda gerou um relaxamento na população e mesmo nas autoridades, que atrasaram as reações. O segundo fator é que entre fevereiro e março tivemos dois grandes e importantes festivais religiosos, um deles de cunho mais religioso-lúdico, que é o Holi, em que as pessoas todas vão para as ruas brincar. Três ou quatro semanas depois, ocorreu um megafestival religioso chamado Kumbha Mela. Reuniões que chegaram à ordem de 600 mil pessoas em um mesmo local de peregrinação e a maior parte, você observa pelas filmagens, sem nenhuma proteção, inclusive estrangeiros de diversas nacionalidades contribuindo com isso. Outros fatores podem ser adicionados, como questões culturais. Eles têm dificuldade de manter distanciamento. Não são como nós, carinhosos ou calorosos em tocar o corpo do outro, mas em filas e em ambientes comerciais, eles não mantêm um afastamento. Eles se mantêm literalmente com os corpos colados uns nos outros, e isso obviamente é um grande caldeirão para pandemias. O governo fez a parte dele, acredito, não tenho acesso a detalhes, mas na primeira onda combateram a desinformação etc. Nessa segunda onda, eles retardaram um pouquinho e, como as pessoas relaxaram, hoje você encontra, assim como no Brasil, muitas pessoas usando máscara no queixo, na testa, na orelha ou em lugares improváveis.
O senhor já teve covid-19?
Eu fui contaminado há mais ou menos três semanas e, por ironia do destino, não me contaminei no hospital. Foi um período de recesso e eu tive que fazer uma viagem curta de ônibus, de sete horas. Nesse ônibus, a maior parte das pessoas, inclusive alguns funcionários, não estava usando máscara. Eu, embora estivesse usando duas máscaras, provavelmente fui contaminado pelos olhos, já que era um sistema de ar-condicionado fechado. Foi a maior possibilidade de contaminação que eu tive. No hospital, tomamos todas as medidas para evitar contágio. Como a nossa exposição não é tão grande quanto no hospital moderno, torna-se menos provável que a gente seja contaminado ali.
Como está a questão da vacinação aí na índia?
Vacinação também é uma questão peculiar. A Índia tem 1,4 bilhão de pessoas e já vacinou cerca de 180 milhões, ou seja, quase o Brasil inteiro, mas ainda existem seis Brasis para serem vacinados. Num primeiro momento, ainda na primeira onda, nós estrangeiros que trabalhamos na área da saúde brigamos bastante para sermos vacinados e não conseguimos. Eu não estou vacinado ainda. Com a entrada da segunda onda e a Índia enxergando que os estrangeiros que residem e trabalham aqui também são potenciais vetores para a disseminação da doença, decidiram vacinar os estrangeiros. Eu ainda não posso me vacinar porque estou terminando os sintomas da covid, ainda estou em convalescença. Vou esperar mais quatro a seis semanas, que é o tempo para não haver recontaminação, para me vacinar. Estou com ela agendada para 28 de maio, quando devo tomar a primeira dose.
Qual é a rotina das cidades indianas nesse período crítico? Há muitas restrições e atividades fechadas ou vida normal?
Existia vida normal até cerca de três semanas atrás. Durante todo o período entre a primeira e a segunda onda, existiram várias restrições pontuais. Determinados Estados ou cidades com lockdown, com restrição de mobilidade à noite e certos tipos de comércio fechados. De duas semanas para cá, nossa região está com toque de recolher entre 20h e 6h, horário em que, se a pessoa for pega na rua, ela é imediatamente recolhida à prisão. Não tem conversa, a não ser que seja profissional de saúde ou de serviço essencial com licença específica para circular nesse horário. E existe lockdown durante o dia, entre 6h e 20h, quando todas as atividades consideradas não essenciais estão fechadas. Estão abertos comércios para alimentos, farmácias, hospitais e locais para água. Mas mesmo comércios de alimentos não podem vender itens considerados não essenciais. Até porque um dos trabalhos que o governo fez foi promover a imunidade natural das pessoas, forçar que as pessoas comam de forma mais natural, alimentos frescos, pré-preparados, evitando os industrializados e processados. É uma das teorias desenvolvidas pelas medicinas tradicionais. E funciona. Os comércios de alimentos não vendem chocolates, refrigerantes, biscoitos etc. Só alimentos de boa qualidade.
São só alimentos naturais?
Exatamente. Você proporcionar à pessoa que ela faça e produza sua comida de forma fresca, quente, a partir de produtos naturais como grãos, feijões, legumes, verduras, evitando tudo o que é enlatado, embutido, processado e multiprocessado. E mesmo os lácteos: eles liberam os queijos frescos, mas não liberam os queijos curados. É para forçar a população a se alimentar melhor para que possa produzir melhor a imunidade. E isso diminui, obviamente, a seriedade das doenças, a reação às doenças mesmo havendo contágio. Foi um dos fatores de sucesso na primeira onda.
Ouça a entrevista completa: