A revisão no sistema de distanciamento controlado, confirmada nesta terça-feira (27) pelo governador Eduardo Leite para permitir a transição da bandeira preta para a vermelha, foi determinada em um momento de recuo nos principais indicadores da pandemia no Rio Grande do Sul.
Os índices de novos casos, internações e mortes ainda se encontram, porém, em patamar muito acima do que era registrado quando teve início o terceiro ciclo de crescimento da doença no Estado, no começo de fevereiro, antes da adoção generalizada da bandeira preta.
A proporção de óbitos semanais acumulados por 100 mil habitantes, hoje, é cerca de três vezes superior ao verificado nos sete dias anteriores a 8 de fevereiro — data que precedeu o início da terceira onda de avanço da pandemia em solo gaúcho por critério de ocupação das UTIs, conforme o comitê de dados do Estado, e que levaria à imposição de restrições máximas nas semanas seguintes.
O índice de óbitos estava em 2,75 imediatamente antes desse avanço, e hoje se encontra em 8,75. No auge da pandemia, quando o Rio Grande do Sul chegou a liderar o ranking nacional nesse quesito, subiu a 18,6. O primeiro ciclo de disparada da covid-19 foi identificado pelo Piratini entre junho e julho do ano passado, e a segunda onda, entre novembro e dezembro.
O somatório semanal de novos casos também se encontra em tendência de declínio: caiu 51% desde o pico e está em 240,9 contaminações por 100 mil habitantes agora. Ainda assim, a cifra é 64% superior à verificada antes da terceira onda.
O doutor em matemática e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Álvaro Krüger Ramos, que monitora os dados da pandemia, observa que a taxa de letalidade semanal também se mantém em nível alto. Entre 18 e 25 de abril, foram registrados 27,1 mil novos casos e 1.004 óbitos, resultando em uma letalidade de 3,7% no período.
— Isso está acima da letalidade acumulada até fevereiro, que era de 1,9% no Estado. Ou seja, ainda há sobrecarga no sistema de saúde — afirma Ramos, relacionando a maior gravidade a dificuldades nas condições de atendimento.
Flexibilização da salvaguarda da bandeira preta
A principal mudança divulgada pelo Piratini eliminou a salvaguarda da bandeira preta (que impõe a classificação de altíssimo risco quando há poucos leitos livres de UTI comparados ao número de internados por covid-19) quando se observarem pelo menos duas semanas de melhora na disponibilidade de vagas hospitalares. Para o infectologista e professor da UFRGS Alexandre Zavascki, a alteração tem a finalidade política de permitir o retorno às aulas (impedido até então por decisão judicial sob bandeira preta), mas sem respaldo científico:
— Sob nenhum indicador que se olhe o Estado está melhor do que antes da adoção da bandeira preta. A única diferença é que, antes, estávamos com a pandemia em ascensão, e, agora, estamos com descenso, mas em um nível muito alto, ainda.
Para Zavascki, o governo se viu forçado a promover as mudanças por incoerências internas dos critérios que escoram o distanciamento controlado.
— O problema é que o modelo foca na variação dos índices. Se os hospitais permanecerem vazios ou lotados, sem variação, as duas situações acabam tendo impacto semelhante sobre os cálculos. A trava da bandeira preta foi criada, em fevereiro, justamente para tentar corrigir isso — observa o infectologista.
Zavascki afirma que a mudança divulgada nesta terça também procura solucionar outra contradição do sistema: a permissão de abertura para estabelecimentos como restaurantes e shoppings enquanto as salas de aula permaneciam chaveadas:
— Nenhuma organização internacional considera seguro retomar aulas com os nossos níveis de transmissão da doença. Mas fica difícil justificar escolas fechadas e shoppings abertos. É um modelo distanciado da realidade.
"Adequação necessária"
O epidemiologista e gerente de Risco do Hospital de Clínicas Ricardo Kuchenbecker avalia que a flexibilização da salvaguarda da bandeira preta é uma “adequação necessária”, levando-se em conta que a doença está em tendência decrescente. Mas recomenda atenção máxima aos indicadores do coronavírus nas próximas semanas.
— Não acho que a flexibilização seja necessariamente um problema. É uma tentativa de se adequar ao cenário atual da doença, considerando-se que o Brasil é campeão mundial em dias sem aula. Mas precisamos ficar atentos porque ainda não temos clareza sobre o patamar que esse atual decréscimo (da covid-19) vai nos permitir chegar — argumenta.
Kuchenbecker avalia como fundamental a decisão de manter a trava da bandeira vermelha, também anunciada pelo governador, a fim de evitar que a cogestão acabasse permitindo a adoção de restrições compatíveis com as de uma bandeira ainda mais branda:
— Correríamos o risco de passar do ponto nas flexibilizações e transmitir para a população uma sensação de insegurança e de perda de credibilidade. É fundamental manter os cuidados porque a vacinação só trará segurança quando atingir entre 60% e 80% da população.