Em meio à intensificação da pandemia em alguns Estados brasileiros, o Ministério da Saúde enfrenta a maior crise desde a queda de Luiz Henrique Mandetta e de Nelson Teich: o risco de jogar no lixo um estoque de testes que ultrapassa o total já aplicado no ano no Brasil. O jornal O Estado de S. Paulo divulgou no início da semana que 7,1 milhões de exames PCR estão em um armazém do ministério e não foram enviados ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Do total estocado, 96% (6,86 milhões de unidades) estão próximos de perder a validade, entre dezembro e janeiro. O caso está tendo repercussão nacional e gerou a revolta de prefeitos, secretários estaduais da Saúde e profissionais da área.
A insatisfação ocorre por dois motivos: prefeitos e médicos sempre defenderam a expansão da testagem, mas não receberam exames dos Estados porque estes afirmam que o governo federal não efetuava o repasse e porque havia exames que simplesmente não eram distribuídos.
Os mais insatisfeitos criticam o ministro Eduardo Pazuello, cuja experiência na área de logística foi destacada pelo presidente Jair Bolsonaro na hora de justificar a escolha de um militar, e não de um profissional da área da saúde, para ser titular da pasta.
— É uma tristeza saber que tem milhões de testes a vencer. Evidente que o erro é do governo federal, que tinha os testes represados. Se a imprensa não descobre, isso ia tudo apodrecer. Os municípios sempre solicitaram mais testes para o Estado, que sempre disse que não poderia fornecer mais porque o governo federal não fornecia. Agora aparecem esses testes guardados em um galpão. É má gestão do governo federal — afirma o presidente da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), Maneco Hassen.
O Ministério da Saúde havia prometido, no início da pandemia, aplicar 46,2 milhões de testes PCR na rede pública até o fim deste ano. Mas, até 21 de novembro, pouco mais de 7 milhões foram feitos, disse na quarta-feira o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Arnaldo Medeiros, em audiência promovida pela Comissão Externa de Enfrentamento à Covid da Câmara dos Deputados, que fiscaliza as ações do governo federal na pandemia.
Prefeitos clamam por mais kits para poderem testar não só quem tem sintomas, mas também assintomáticos que convivem com o infectado (familiares e colegas de trabalho, por exemplo). Hoje, na maior parte das cidades brasileiras, isso não é possível – Porto Alegre é uma das exceções, como mostra esta reportagem.
Os 6,86 milhões de exames com prazo de validade próximo são de uma compra feita por intermédio da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Medeiros afirmou, na audiência em Brasília, que existe uma diferença na data de validade da caixa que reúne os insumos em relação à data de vencimento dos insumos em si – estes poderiam ser usados até 2023.
— O kit não é formado pela caixa, mas sim por componentes. E quando você olha para o prazo de validade dos componentes do kit, verifica que é 2023, por exemplo — declarou o secretário de Vigilância.
O Ministério da Saúde não soube explicar o motivo da divergência entre as datas.
CNS aponta que custo dos kits foi de R$ 280 milhões
O Conselho Nacional da Saúde (CNS), órgão da sociedade civil que fiscaliza o ministério, citou, em relatório, que os exames encalhados custaram R$ 280 milhões, e pediu esclarecimentos. Entre eles, entender quais os planos da União para ampliar a testagem na rede municipal e quais são os itens incluídos em cada kit – secretários reclamam que receberam unidades sem reagentes, tubos e cotonetes necessários para a análise do teste.
O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Benjamin Zymler cobrou explicações do Ministério e disse, na quarta (25), que a pasta deve adotar "posição centralizada de liderança para coordenar a atuação em todo o Brasil" em vez de alegar que envia insumos, como testes, apenas quando há pedidos de Estados e municípios – esta foi a justificativa dada pelo ministério a GZH.
O jornal O Estado de S. Paulo ainda aponta que o Rio Grande do Sul é o 12º Estado na lista de recebimento de testes PCR, apesar de ter a sexta maior população do país. Outros Estados menores também receberam mais testes do que unidades com mais habitantes.
Questionado por GZH sobre o critério na distribuição, o Ministério da Saúde diz que repassou conforme a demanda de Estados e de municípios. Também acrescentou que os exames estão prontos para serem enviados.
Prorrogação da validade depende da Anvisa
O ministério tenta prorrogar a validade dos exames, o que depende de aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A fabricante do produto entregou na quarta-feira (25) estudos indicando que o produto pode ser usado por mais quatro meses.
A Anvisa informou a GZH, por meio de sua assessoria de comunicação, que ainda não recebeu o pedido formal para avaliar a extensão do prazo de validade dos testes PCR estocados do Ministério da Saúde, mas que a avaliação será feita no menor prazo possível.
Representando a Anvisa na audiência de fiscalização da Câmara dos Deputados, Cristiane Jourdan citou que usar os testes fora do prazo pode comprometer os resultados.
— A perda da estabilidade está relacionada à perda de qualidade, comprometendo a sensibilidade e a especificidade do teste diagnóstico, ou seja, podendo ocasionar resultados falsos positivos/negativos, o que prejudica a política pública para a covid-19 — disse.
O que dizem especialistas?
Deixar os testes encalhados é um “escândalo” que prejudica o controle da pandemia, diz o professor de Infectologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e chefe do laboratório que processa exames PCR na Santa Casa da capital gaúcha, Alessandro Pasqualotto.
— É um prejuízo imenso porque deixamos de usar uma ferramenta que direciona os isolamentos de maneira eficiente. É esse teste que nos permite dizer quem deve ficar isolado de fato, o único que torna possível isolar efetivamente quem está doente, mesmo assintomático. O teste rápido é pouco sensível e detecta anticorpos, que só aparecem depois que a doença já foi embora. Se houvesse mais testes PCR, poderíamos ir em uma comunidade e testar todos os contactantes de quem teve coronavírus — argumenta.
Para Ronaldo Hallal, médico do Comitê Covid-19 da Sociedade Sul-Riograndense de Infectologia, o caso preocupa. Ele cita o consenso mundial sobre a importância de expandir a testagem para além de pessoas com sintomas para o coronavírus.
— Isso mostra uma descoordenação nacional, um desalinhamento com Estados e municípios na logística de distribuição. Esperaríamos que o governo federal realizasse a indução das políticas de testagem, não apenas receber solicitações e respondê-las. Tem responsabilidade pela saúde da população brasileira. Estamos falando de vidas que diariamente perdemos e da expansão da pandemia em um cenário que o país não reduziu os níveis de transmissão comunitária — afirma Hallal.
Leia o posicionamento do Ministério da Saúde
"O Ministério da Saúde informa que a exemplo do que ocorreu com outros lotes de testes utilizados em outros países, devem chegar ao Brasil, ainda esta semana, estudos de estabilidade estendida para os testes que a pasta tem em estoque.
A empresa Seegene, fornecedora dos testes ao MS, já está em contato com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o envio dos estudos, assim que disponibilizados pelo fabricante.
Esses estudos serão analisados pela Anvisa, que é a agência que concede o registro de utilização do produto. Uma vez concedido esse parecer técnico, o Ministério da Saúde elaborará uma nota informativa quanto à extensão da validade e segurança da utilização dos testes. (...)
O Brasil já testou mais de 10.491.142 pessoas, sendo 5.043.469 testes RT-qPCR realizados, dos 9.317.356 milhões de testes RT-qPCR distribuídos para os Laboratórios públicos dos Estados.
É importante esclarecer ainda que o diagnóstico médico para iniciar o tratamento precoce poderá ser apenas clínico-físico, podendo ainda ser clínico-epidemiológico, clínico com suporte de imagens ou clínico-laboratorial.Assim, o RT-qPCR não é a única forma de diagnóstico da doença. (...)
A pasta ressalta que nenhum teste de RT-qPCR perdeu sua validade e os mesmos estão prontos para serem utilizados conforme demanda dos estados e municípios, em consonância com a gestão do SUS, que é tripartite."