Conteúdo verificado: post no Twitter afirma que o tratamento ou a vacina contra febre amarela, dengue, tuberculose, aids e sífilis não são obrigatórios e que por isso a vacina contra covid-19 não deveria ser compulsória. A publicação cita que a “taxa de morte” do novo coronavírus é baixa.
Um tuíte viral faz uma comparação enganosa entre os índices de mortes da covid-19 e os de febre amarela, dengue, tuberculose, aids e sífilis para minimizar os impactos da doença causada pelo coronavírus. De fato, a letalidade (razão entre número de mortes e o total de pacientes) da covid-19 é menor do que as de febre amarela, tuberculose e aids, mas outros indicadores — como mortalidade (mortes em relação ao total da população) e o total de óbitos e de casos diagnosticados — são muito maiores para a covid-19, fazendo com que a doença seja tratada como uma emergência no mundo todo.
O tuíte analisado compara diferentes doenças para questionar a possível obrigatoriedade de uma vacina contra o coronavírus. Apesar de ainda não existir um imunizante aprovado contra a covid-19, a possibilidade de vacinação compulsória está prevista em lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em fevereiro. Além disso, duas das doenças citadas — febre amarela e tuberculose — têm vacinas disponíveis. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece a obrigatoriedade da vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.
É importante destacar ainda que as enfermidades mencionadas no tuíte têm formas de transmissão bastante diferentes, o que dificulta a comparação entre elas. Apenas na tuberculose o contágio é por via aérea, como na covid-19. Febre amarela e dengue têm transmissão por vetores contaminados (mosquitos). Já aids e sífilis podem ser transmitidas por sexo desprotegido ou de mãe para filho, durante a gestação, entre outras formas.
Como verificamos?
O Comprova buscou dados de números de mortes, casos diagnosticados e outros indicadores relevantes das doenças citadas no portal do Ministério da Saúde. Os boletins epidemiológicos mais recentes estão disponíveis neste link. O site do Departamento de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis também foi fonte de informações adicionais.
A reportagem também consultou o DataSUS, ferramenta de estatísticas do Ministério da Saúde, para obter dados de morbidade hospitalar no Sistema Único de Saúde (SUS). Os números consolidados mais recentes disponíveis nessa plataforma são de 2018.
Por fim, conversamos por telefone com Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), e com Fernando Carvalho, epidemiologista da Universidade Federal da Bahia (UFBA), para contextualizar os números consultados.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o coronavírus e a covid-19 disponíveis em 8 de setembro de 2020.
Verificação
Letalidade da covid-19
A taxa de letalidade da covid-19 no Brasil, de 3,4%, realmente é baixa em comparação com a da febre amarela, da aids e da tuberculose. No entanto, o número de casos confirmados é muito maior do que o número de diagnósticos das outras doenças citadas. De acordo com especialistas ouvidos pelo Comprova, os mais de 4 milhões de infectados por coronavírus fazem com que ela seja mais preocupante do nque a febre amarela, por exemplo, que possui uma vacina obrigatória no calendário de vacinação do ECA, e, mesmo com uma taxa de letalidade de 16,7%, registrou apenas 18 casos entre julho de 2019 e maio de 2020, com três mortes.
— A covid ainda é uma doença nova para nós e que a gente ainda está aprendendo, mas, ao mesmo tempo, nós temos quatro milhões de pessoas infectadas no Brasil e mais de 120 mil mortos. Então, a gente não pode desprezar, como sendo uma doença sem repercussão. Pode até, comparada com outras, ter uma letalidade menor, mas com esse número tão grande de pessoas infectadas, uma letalidade que pode não ser tão grande se transforma em um absurdo como esse que a gente tem — explica Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
— Fica difícil comparar letalidade por letalidade. Por exemplo, febre amarela é uma doença que tem uma letalidade bem mais alta, mas esse ano tivemos 18 casos no Brasil com três óbitos. Então, não dá para comparar com 4 milhões de casos, mesmo com a letalidade mais baixa. Os números que a gente tem são incomparáveis com qualquer uma dessas aí, tanto tuberculose, aids, febre amarela. Qualquer uma delas a gente não consegue comparar esses números — prossegue Cunha.
Diferenças entre as doenças citadas
A covid-19 é uma doença nova: os primeiros casos foram registrados na China em dezembro de 2019. Ainda não há vacina ou tratamento reconhecidamente eficaz contra o novo coronavírus.
A aids é uma doença causada pelo vírus HIV, que ataca o sistema imunológico. A transmissão ocorre por sexo sem proteção, uso compartilhado de seringas, transfusão de sangue ou de mãe para filho, durante a gravidez. O tratamento, disponível gratuitamente no SUS, é feito com medicamentos antirretrovirais, que impedem a multiplicação do vírus no organismo.
A estimativa mais recente do Ministério da Saúde é de que, ao final de 2018, havia 900 mil pessoas vivendo com HIV no país. Dessas, 85% estavam diagnosticadas, 81% estavam vinculadas a algum serviço de saúde e 66% faziam uso dos medicamentos antirretrovirais.
Ainda segundo o ministério, a política pública de combate ao HIV/Aids nas últimas três décadas tem se baseado na universalização do acesso à terapia antirretroviral, na testagem em massa nos serviços públicos, especialmente para as populações-chave, e na campanha de conscientização sobre prevenção.
Assim como a aids, a sífilis é uma infecção sexualmente transmissível (IST). Uma das formas mais importantes de prevenção é o uso de camisinha masculina ou feminina. A infecção é causada por uma bactéria chamada Treponema pallidum e é curável, com uso da penicilina benzatina (benzetacil).
A sífilis congênita é transmitida para a criança durante a gestação e pode causar uma série de complicações. Por isso, é importante que a mulher faça o exame de sífilis durante o pré-natal para começar o tratamento. O Ministério da Saúde estimula a testagem e o uso de preservativo como forma de prevenção.
A dengue, por sua vez, é causada por um arbovírus, transmitida pela picada do mosquito Aedes aegypti. Não existe um tratamento específico para essa doença — em geral, a assistência médica é feita de forma a aliviar os sintomas, com repouso e hidratação. Na maioria dos casos, há cura espontânea depois de 10 dias.
A política do Ministério da Saúde contra dengue gira em torno do combate ao mosquito transmissor: tanto no trabalho de campo contra o Aedes quanto na conscientização da população sobre as formas de eliminá-lo.
Em 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou o uso da vacina Dengvaxia (CYD-TDV) para o combate à dengue. A imunização é voltada para pessoas de nove a 45 anos. Além dela, o Instituto Butantan entrou na terceira fase de testes de uma outra vacina. Essa etapa deve terminar em 2024.
A febre amarela também é causada por um vírus transmitido pela picada de mosquitos (dos gêneros Haemagogus e Sabethes em áreas silvestres e do Aedes aegypti em áreas urbanas). Em geral, ocorre em surtos de forma sazonal, de dezembro a maio. A vacina contra febre amarela, disponível no Calendário Nacional de Vacinação, protege contra a infecção durante a vida toda.
Em março deste ano, o Ministério da Saúde iniciou uma campanha de vacinação contra a febre amarela em seis Estados. “A febre amarela apresenta alta letalidade, por isso é importante que a população atenda aos alertas dos serviços de saúde para vacinação, e desta forma prevenir a ocorrência de casos, óbitos e surtos de maior magnitude. A vacina é segura e altamente eficaz (acima de 95%)”, disse, em nota oficial, Rodrigo Said, coordenador-geral de vigilância em arbovirose do Ministério da Saúde.
Além da vacinação, o Ministério da Saúde também aposta na vigilância de primatas não humanos que possam carregar o vírus causador da doença.
A tuberculose é a única entre as doenças citadas no tuíte analisado que é transmitida pelo ar, assim como a covid-19. Diferentemente da doença causada pelo coronavírus, a tuberculose tem cura. O tratamento dura seis meses e está disponível gratuitamente no SUS.
A infecção é causada pelo bacilo de Koch e geralmente afeta os pulmões, mas pode atingir outros órgãos. A vacina BCG, também ofertada no Calendário Nacional de Vacinação, protege as crianças das formas mais graves da doença.
Em 2017, o Ministério da Saúde lançou o Plano Nacional de Combate à Tuberculose, baseado em pilares definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) — entre as ações previstas, estão o incentivo à testagem e ao tratamento continuado até o fim.
Movimento antivacina
A onda antivacina que tem tomado o mundo preocupa os profissionais de saúde. Em pesquisa recente feita pelo Datafolha, 9% dos entrevistados disseram que não tomariam a vacina da covid-19 quando ela estivesse disponível, 89% disseram que tomariam e 3% não souberam responder.
— O movimento antivacina é algo que você não consegue discutir, porque é mais ideológico, ele não consegue fazer uma discussão com base na ciência. Mas a gente tem o grupo dos hesitantes, que são aqueles que estão na dúvida sobre a vacina, ou por causa da eficácia, ou da segurança, ou têm medo dos eventos adversos. Essas declarações antivacina podem impactar esse grupo que, em geral, a ciência sempre consegue responder o que ele quer saber — salienta Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações.
O epidemiologista Fernando Carvalho acredita que, mesmo com o movimento antivacina, a procura para ser vacinado ganhará força na população:
— Com uma doença como a covid, é importante que grande parte da população seja vacinada, principalmente aqueles que não tiveram contato com a doença. Como a gente não sabe se a doença deixa imunidade duradoura, então vai ser uma vacinação, ao que tudo indica, para os grupos de risco, os idosos, pessoas com comorbidade, pessoal de saúde. Não tenha dúvida de que, quando abrir a vacinação, vai ter candidatos em massa. Somente os malucos que estão querendo criar um clima.
O debate sobre a obrigatoriedade da vacina voltou a ser assunto depois que o presidente Jair Bolsonaro disse que ninguém seria obrigado a se vacinar. A opinião foi corroborada pela Secretaria de Comunicação do Governo Federal (Secom), em posts nas redes sociais, e pelo vice-presidente Hamilton Mourão.
— O que é que eu posso dizer: está errada essa afirmativa do presidente de que ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina. Pode, por lei pode. É recomendável, inclusive, que as pessoas tomem para não se prejudicar a si e aos outros. Inclusive, a lei vem, principalmente, por causa dos outros. A saúde é pública, não é do cidadão libertário individual — acrescenta Carvalho.
Como o Comprova mostrou, a lei nº 13.979/20, de iniciativa do governo federal e sancionada por Bolsonaro, prevê a obrigatoriedade da vacinação enquanto seguir o estado de calamidade pública.
O autor do tuíte
O tuíte analisado foi publicado pelo perfil @canalCCore2, que tem 39,5 mil seguidores. Esse usuário faz postagens frequentes de apoio a Jair Bolsonaro e de divulgação de uma rede social para conservadores.
Procurado pelo Comprova, ele argumentou que o tuíte analisado expressava sua opinião. — — Usei essas doenças como exemplos de coisas que matam, sempre mataram, e ninguém nunca ligou — disse.
Ele citou uma reportagem do Estadão de janeiro de 2018 sobre um surto de febre amarela, que informava que o índice de letalidade da doença em São Paulo naquela ocasião era de 40%. Entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018, foram registradas 81 mortes por febre amarela no país.
Por que investigamos?
A terceira fase do Projeto Comprova investiga conteúdos relacionados às políticas públicas e à pandemia do coronavírus. Conteúdos enganosos sobre a covid-19 são perigosos porque podem custar vidas. Até 8 de setembro, mais de 127 mil pessoas morreram no Brasil por causa da doença.
A vacina é a maneira mais eficiente de imunizar a população. Postagens como a verificada levantam conspirações que não têm embasamento científico. Isso pode levar as pessoas a optar por não se vacinarem, mesmo com uma possível obrigatoriedade.
A postagem verificada teve mais de 4,6 mil interações até o momento da publicação deste texto.
O Comprova já fez outras verificações envolvendo a vacina para a covid-19. Uma delas afirmava que a vacina causaria danos irreversíveis ao DNA, o que não é verdade. Outra mostrou que é falso que um projeto de lei previsse a prisão para quem se recusasse a ser vacinado.
Enganoso, para o Comprova, é conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Projeto Comprova
Depois de um período especial de 75 dias dedicado exclusivamente à verificação de conteúdos suspeitos sobre o coronavírus e a covid-19, o Projeto Comprova começou em 10 de junho a terceira fase de suas operações de combate à desinformação e a conteúdos enganosos na internet. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras.
Nesta terceira etapa, o Comprova vai retomar o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições municipais, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19. Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance.
Este conteúdo foi investigado por Estadão e UOL e verificado por Folha, GZH, Jornal do Commércio, Nexo, O Povo, Piauí e Poder360.
É possível enviar sugestões de conteúdos duvidosos e que podem ser verificados por meio do site e por WhatsApp (11 97795-0022). GZH publicará conteúdos checados pela iniciativa. O Comprova tem patrocínio de Google News Initiative (GNI), Facebook Journalism Project, First Draft News e WhatsApp e apoio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). A coordenação é da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).