Quem analisa os números oficiais da covid-19 pode pensar que Porto Alegre enfrenta duas pandemias diferentes de coronavírus.
As bases de dados do Ministério e da Secretaria Estadual da Saúde (SES), utilizadas por pesquisadores e sites para estudos e comparações, registravam 14,7 mil contaminações na Capital até o começo da tarde desta sexta-feira (4). Os registros da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) revelam que o impacto do vírus, na verdade, é muito maior: as infecções já ultrapassavam 25,5 mil casos. A existência de uma diferença superior a 10,7 mil notificações significa que Estado e União não contabilizaram 42,2% dos doentes confirmados pela prefeitura até aquele momento.
As divergências entre as informações municipais e as que constam nas planilhas estadual e federal persistem pelo menos desde maio e chegaram a um ponto em que, conforme especialistas, comprometem parte das análises sobre o comportamento da covid-19 na Capital e no Estado. O problema não chega a afetar a notificação de óbitos ou internações.
— Sites que puxam as bases de dados do Ministério da Saúde, por exemplo, utilizam números defasados de casos acumulados. Assim, não temos como ter análises automatizadas da pandemia em Porto Alegre. Pesquisadores que usam os dados do Ministério da Saúde também usam números irreais — avalia o doutor em matemática e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Álvaro Krüger Ramos, que realiza estudos sobre a pandemia.
A quantidade real de testes positivos é 73% superior à divulgada oficialmente pela União. Um dos prejuízos decorrentes disso é que sites que acessam automaticamente o banco de dados do ministério para calcular índices como a taxa de contaminação da covid-19 em cidades brasileiras apresentam um cenário mais favorável para Porto Alegre do que o real. O número de infecções é um dos itens considerados nessa conta.
O represamento também interfere no cálculo da letalidade, que é a proporção de óbitos sobre a quantidade de doentes. Se há menos pessoas com o vírus contabilizadas, o índice aumenta artificialmente. O tamanho do abismo estatístico é tão grande, conforme Ramos, que já compromete análises sobre o comportamento da pandemia no Estado.
— Esses 10 mil casos que não aparecem para Porto Alegre também não aparecem no total do Rio Grande do Sul, e já representam uma fatia significativa dos registros de coronavírus no Estado — alerta o matemático.
Na tarde de sexta, os doentes de covid-19 ignorados pelo banco de dados disponível no site do governo gaúcho representavam 8% dos 134,6 mil contaminados reconhecidos oficialmente. Na realidade, a quantidade de exames positivos no Estado já seria superior a 145 mil naquele momento.
A origem do problema está em falhas de integração entre sistemas utilizados para notificação. O padrão estabelecido na portaria 318/2020 da SES é utilizar duas ferramentas geridas pelo governo federal: o e-SUS Notifica (para casos sem hospitalização) e o Sivep-Gripe (para casos hospitalizados e óbitos). A prefeitura de Porto Alegre optou por utilizar um sistema de gestão própria para a notificação de doentes não hospitalizados, o Gercon, e integrá-lo ao e-SUS Notifica. O problema é que essa integração vem apresentando falhas. Por isso, parte dos registros enviados pelo município não é de fato tabulada pelo Ministério da Saúde.
A SMS informa que tem realizado a exportação dos dados com posterior confirmação de recebimento por parte do sistema federal, mas sem que os números tenham de fato sido incluídos na base de dados. Uma nova reunião foi marcada entre representantes do município, do Estado e do Ministério da Saúde para esta sexta-feira a fim de buscar uma solução.
— O uso de número de casos (de covid) já não é muito confiável porque depende do grau de testagem de cada local. Esse tipo de problema o torna menos confiável ainda. Só não causa um problema maior porque temos dados de óbitos e internações em UTIs que são parâmetros melhores para monitorar a pandemia — avalia o epidemiologista e consultor do Hospital de Clínicas Jair Ferreira.
O que dizem os órgãos de Saúde
Secretaria Municipal da Saúde (SMS)
Em nota, informa: "A solução definitiva já foi construída pelo município de Porto Alegre junto ao sistema do Ministério da Saúde (MS) mediante solução de integração entre os sistemas, e a equipe de Tecnologia e Informação da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) vem reportando sistematicamente a SES e MS os incidentes observados. Quando iniciou a discrepância dos dados, a SMS oficiou a Secretaria Estadual de Saúde (SES-RS) questionando se havia alguma metodologia diferente para os dados não estarem de acordo. Não houve resposta desse documento.
Em nome da transparência dos dados e da clareza necessária para a população, a SMS segue divulgando a íntegra das informações como são exportadas para o Sistema E-SUS Notifica, e tem o retorno de 'dados recebidos com sucesso' por parte do próprio sistema do MS. Cabe ressaltar que a SES estabeleceu o e-SUS como sistema compulsório para registro de notificações no Estado. Por este motivo, a SMS integrou os sistemas municipal (Gercon) e federal (e-SUS Notifica).
Esta ferramenta foi estabilizada e concluída em 17 de julho. No entanto, a SMS identificou e reportou ao Ministério da Saúde, em 22 e 24 de julho, divergências entre dados enviados ao sistema integrado e dados registrados no e-SUS. Não tendo recebido resposta resolutiva, ratificamos discrepâncias em 17/08 e 27/08, com reenvio de um conjunto de dados e artefatos mostrando que a SMS está enviando os dados completos de notificação, o sistema do MS acusa em log, por e-mail, o recebimento com sucesso dos dados, contudo tais informações não são efetivamente contabilizadas no sistema do MS."
Secretaria Estadual da Saúde (SES)
Em nota, relata: "Os casos notificados pelos serviços de saúde das redes pública e privada nos dois sistemas oficiais do Ministério da Saúde: e-SUS Notifica (para casos não hospitalizados) e Sivep-Gripe (para casos hospitalizados e óbitos). Diariamente, são exportados os bancos de dados dessas duas fontes, cruzados dados entre eles e publicados os casos e os óbitos no site e nas redes sociais da SES.
A utilização desses sistemas foi normatizada em portaria específica da SES em maio deste ano (Portaria 318/2020), que trata da notificação, do monitoramento e do encerramento dos casos suspeitos e confirmados. No início da pandemia, a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre optou por não utilizar o e-SUS Notifica (para casos não hospitalizados). No lugar dele, usou uma ferramenta de gestão própria, o sistema de gerenciamento de consultas (Gercon). Em julho, o município organizou a migração automática dos dados de seu sistema para o e-SUS Notifica.
Contudo, essa exportação não aconteceu em sua totalidade. Nenhum desses dois sistemas são gerenciados pela SES. Portanto, cabe ao Ministério da Saúde e ao município acertar eventuais falhas de compatibilidade das informações geradas pelos dois sistemas."
Ministério da Saúde
A assessoria de comunicação informou: "Após análise da situação informada, o Ministério da Saúde, por meio do Departamento de Informática do SUS (DATASUS), concluiu que não há erros nos dados ou nos sistemas do governo federal. No entanto, depende da forma como a consulta é realizada na base de dados do município. Por isso, está prevista para hoje (sexta-feira, 4) uma reunião online para fornecer orientações à Secretaria Municipal de Saúde."