No fim de 2008, aos 27 anos, Ingret Silva Lanzoni soube que tinha uma doença sem cura. A descoberta foi feita depois que, entre outras coisas, percebeu que não se sentia bem toda vez que estava no banco do carona do carro. Como seu pai, Antonio Carlos Lanzoni, tinha a doença, a levou em um neurologista. Após um mês de investigação, soube, enfim, que tinha esclerose múltipla, doença autoimune na qual os anticorpos produzidos pelo organismo entendem que o sistema nervoso central é um "inimigo" que deve ser atacado. Onze anos depois do diagnóstico, ela foi submetida a um transplante de células-tronco, procedimento inédito no Estado e que tem como objetivo parar a progressão da doença.
— O que facilita muito o nosso entendimento é pensar nesse "múltipla" — diz a médica Maria Cecília Aragon de Vecino, coordenadora do Núcleo de Esclerose Múltipla e Doenças Desmielinizantes do Serviço de Neurologia e Neurocirurgia do Hospital Moinhos de Vento (HMV), em Porto Alegre. — Isso diz que podem ter sintomas de qualquer área do sistema nervoso. Então, às vezes, é uma dormência em um lado da coxa. Em outras, pode haver inflamação no nervo óptico e levar à perda da visão. A resposta de cada pessoa é diferente. Tem coisas sutis e pesadas, e isso varia ao longo do tempo. A evolução é extremamente pessoal — completa.
Sem cura para a doença, o paciente conta apenas com tratamentos à base de medicamentos que atuam para impedir que esse ataque ao sistema nervoso aconteça, evitando a progressão do quadro. No caso de Ingret, todas as drogas disponíveis e que foram surgindo ao longo desses anos foram usadas, mas tiveram resposta parcial.
— Eu tomei vários remédios. Todos os que estavam disponíveis. (A doença) afetou em tudo, não tive mais uma vida normal depois da esclerose — conta.
Nem mesmo o medicamento considerado mais potente surtiu efeito. Foi então que Maria Cecília, médica de Ingret, passou a considerar a última e mais agressiva tentativa para a paciente: o transplante de células-tronco da medula óssea, procedimento já bem estabelecido para casos como o de Ingret, nos quais não há resposta às terapias prévias e a doença se mantém em progressão.
— É para tipos específicos de doença, casos muito difíceis. De forma alguma é a primeira opção — enfatiza a hematologista Claudia Caceres Astigarraga, responsável técnica pelo programa de transplante de medula óssea do HMV.
Depois de ponderar os riscos e as vantagens, Ingret foi submetida ao transplante no fim de 2019. Essa foi a primeira vez que o procedimento como tratamento da esclerose múltipla foi realizado no Rio Grande do Sul.
— É inédito no Estado, mas não é novo. Há outros centros no Brasil que fazem, como em Ribeirão Preto. É preciso uma equipe com conhecimento. Precisa um transplantador com experiência e um neurologista habituado com esse tipo de paciente. Do ponto de vista médico, nós tínhamos condições de realizar aqui — garante Claudia.
Papel do transplante
As doenças autoimunes são definidas como aquelas nas quais o próprio corpo produz anticorpos para atacar determinadas partes do organismo. Na esclerose múltipla, o sistema imunológico não entende que as células do sistema nervoso pertencem à pessoa, logo, ele as ataca. Com o transplante, o objetivo é reeducar o sistema imunológico. Em termos práticos, significa "reiniciar" do zero o sistema de defesa do paciente. Tanto é que a pessoa precisa ser revacinada novamente.
Mais de seis meses após o procedimento, tempo considerado adequado para avaliar o transplante, os resultados de Ingret são animadores: nenhum novo sintoma surgiu e a ressonância que fez na última semana não apresentou atividade inflamatória.
— Depois do transplante não tive mais lesões novas nem crises. Agora, a vida está mais tranquila. Mas continua difícil, com as limitações que a doença me trouxe — conclui.
No próximo domingo (30), é lembrado o Dia Nacional de Conscientização sobre a Esclerose Múltipla. Conforme Maria Cecília, 35 mil pessoas no Brasil usam medicamentos para tratar a doença, colocando o país em um patamar de prevalência considerada média. Os locais com maior número de pacientes são Estados Unidos, Canadá e nações europeias. Como ainda é considerado novo, o tratamento que Ingret fez não faz parte do rol oferecido por planos privados nem pelo Sistema Único de Saúde (SUS).