A atualização dos procedimentos de justificação e autorização da interrupção da gravidez, nos casos previstos em lei no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), divulgada nesta sexta-feira (28) pelo Ministério da Saúde, causou perplexidade em entidades médicas e de defesa das mulheres. Publicada no Diário Oficial da União, a Portaria nº 2.282/2020 substitui a norma anterior (Portaria nº 1.508/2005).
Um dos pontos polêmicos da nova norma prevê que, antes da aprovar a interrupção da gravidez, a equipe médica deverá informar à gestante acerca da possibilidade de visualizar o feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso assim ela deseje. Para isso, ela deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada.
Na noite desta sexta, a Marcha Mundial das Mulheres RS emitiu nota falando sobre a portaria, considerando grave violação a sugestão do exame. O texto diz: "A exposição desse tipo de imagem a uma vítima já em situação extremamente vulnerável pode muito bem ser classificada de tortura contra as mulheres, uma grave violação dos Direitos Humanos. Isso abre espaço para que profissionais religiosos pressionem as mulheres a não realizarem o aborto. Dentre as diversas consequências da violência sexual, a gravidez é uma das piores para a mulher. Além disso, a gravidez decorrente de estupro também coloca a mulher na circunstância de escolher o desfecho da gestação – mantê-la ou interrompê-la. Nesse sentido, forçar uma mulher a manter essa gravidez sofrida pode ser considerado uma segunda violência. É preciso afirmar sem medo: todo e qualquer procedimento que dificulte o acesso ao aborto legal em caso de estupro viola o direito constitucional da mulher vítima de violência.”
Mesmo que a possibilidade tenha sido pensada para as gestantes que estão no processo porque teriam filhos anencéfalos, a militante feminista e integrante da Marcha Mundial das Mulheres Cláudia Prates afirma ser impossível normatizar a questão:
— Acho difícil uma mulher vítima de estupro, que é um dos casos liberados para a interrupção da gravidez, querer olhar o ultrassom ou ouvir os batimentos cardíacos. É mais um elemento de tortura em um momento muito difícil, além de toda a violência que ela sofreu.
Cláudia acrescenta que a portaria tem um texto confuso e que pode intimidar as mulheres e criar ainda mais barreiras para que elas tenham acesso ao serviço.
Para a advogada Renata Jardim, integrante da Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos, a portaria do Ministério da Saúde é um retrocesso em relação aos diretos das mulheres em situação ou vítimas de violência sexual.
— Recebemos com bastante preocupação. Ela traz novas barreiras e novos procedimentos, num serviço que deveria cuidar das mulheres — afirma.
Renata sustenta que os profissionais de saúde deveriam ter o posicionamento de acolher e acreditar na palavra da mulher, garantindo a ela o direito previsto no Código Penal desde 1940, nos casos que envolvem violência sexual, risco de vida para a mulher e anencefalia, sem se preocuparem com documentos e procedimentos de justificação para estas situações.
Notificação à polícia
O novo texto determina também que médicos, profissionais de saúde ou responsáveis por estabelecimento de saúde notifiquem à polícia os casos em que houver indícios ou confirmação de estupro. Ainda que já previsto em lei, o pedido de notificação não integrava documentos do ministério.
Para o presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), o médico ginecologista e obstetra Carlos Isaia Filho, a portaria leva o profissional a quebrar a relação médico-paciente, fundamentada na confidencialidade, no sigilo e na autonomia. Isaia Filho destaca que colocar a responsabilidade sobre o médico ou a autoridade do hospital determinando que eles façam a denúncia, mesmo sem a autorização da paciente, é uma violência contra mulher:
— É uma questão extremamente delicada. Primeiro, ela foi vítima de estupro. Depois, ela não quer que denuncie e o médico é obrigado a denunciar. Isso é uma segunda violência.
Presidente da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Rio Grande do Sul (Sogirgs), Ana Selma Picoloto não vê espaço para o médico ser responsável por registrar um boletim de ocorrência nos casos em que a paciente tiver indícios ou confirmação do crime de estupro.
— Há uma lei dizendo que a mulher vítima de estupro não precisa fazer ocorrência para solicitar o aborto legal. Se ela não é obrigada a se expor numa delegacia, como um médico tomará esta decisão? Acho totalmente contraditório. Existe uma obrigação do exercício da Medicina que é o segredo médico. O médico não pode quebrar o sigilo da sua consulta com a paciente. Isso é um dos conceitos mais importantes da Medicina e não vejo como isso possa ser feito — afirma.
Isaia Filho também questiona outro trecho da portaria, que diz que os profissionais de saúde devem “preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime”.
— Em qualquer procedimento médico, quando se tira uma peça do corpo, envia-se o material para exame anatomopatológico. É normal, não se coloca no balde ou se joga fora. Mas como faremos no caso de ter que notificar? Daremos um frasco para a gestante levar à polícia ou esperaremos o laudo do exame anatomopatológico para que ela entregue depois ao responsável policial. É preciso regulamentar melhor estes procedimentos que esta portaria exige que sejam feitos — sugere o especialista.
Na noite desta sexta-feira, entidades de todo o Brasil que fazem parte da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto estão reunidas para discutir a portaria do Ministério da Saúde. O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) emitiu nota de alerta sobre o tema:
“O Ministério da Saúde publicou uma portaria que dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no Sistema Único de Saúde-SUS. Na prática a portaria inviabiliza o atendimento das mulheres e meninas vítimas de violência sexual nos serviços de saúde, ao exigir: notificação da autoridade policial pelo médico com preservação de evidências; parecer técnico médico; aprovação de uma equipe de saúde multiprofissional; dentre outros procedimentos.
A portaria é uma forte reação à mobilização do movimento de mulheres. E demonstra como o entendimento do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no caso da menina do Espírito Santo é parte do projeto de governo fundamentalista. Para este governo, a palavra das mulheres e meninas sobre a violência sofrida não vale nada.”