Esta quarta-feira (22) foi um dia emblemático na vida do médico de família Pedro (nome fictício), morador do Rio de Janeiro. Começou com uma paciente grave, com saturação de oxigênio no sangue em 93%, que ele conseguiu levar para ser internada na unidade de pronto atendimento ao lado.
Logo depois chegou outro saturando em 87% (o aceitável é acima de 95%), que ele também conseguiu transferir ao outro prédio, mas ficou em uma poltrona de acompanhante porque não havia leito. Quando veio a terceira, porém, uma idosa de 85 anos quase em coma, a resposta foi direta:
– Não temos como recebê-la.
O jeito foi improvisar um equipamento de oxigênio e esperar uma vaga aparecer no sistema de regulação, o que aconteceu cerca de 5 horas depois, quando a clínica já havia fechada. Nesse meio tempo, um tiroteio completou o cenário de caos. Uma outra paciente com sintomas de covid-19 tentou se jogar da maca, mas Pedro, a enfermeira e a técnica de enfermagem conseguiram agarrá-la e sentaram com ela no colo até tudo passar.
A história cinematográfica, nas palavras de Pedro, se passou na clínica da família de Manguinhos, na zona norte do Rio de Janeiro. Narrativas parecidas pipocam em toda a capital à medida que o coronavírus se espalha.
Já sem vagas disponíveis para pacientes com a doença na rede pública, a cidade sente falta dos hospitais de campanha, que ainda não foram abertos. Unidades menores, como clínicas da família, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e CERs Coordenações de Emergência Regionais (CERs), estão lotadas, sem conseguir transferir pacientes.
Com isso, pacientes da capital estão sendo enviados para o Hospital Regional Zilda Arns, em Volta Redonda, a mais de 1h30min de distância. A Secretaria Estadual de Saúde diz que as transferências são parte do protocolo para não sobrecarregar as equipes.
"Os pacientes de covid-19 necessitam de preparo específico pela gravidade dos quadros. Isso faz com que a secretaria encaminhe o paciente de forma alternada para as diferentes unidades espalhadas pelo território", diz a pasta em nota.
A reportagem apurou que cerca de 60 a 70 pacientes esperavam por leitos de UTI na capital nesta quarta (22). Para enfermaria, eram 300 à espera. São pessoas que estão só estabilizadas, em condições inadequadas, muitas vezes sem isolamento e acesso a exames ou respiradores, e atendidas por profissionais que reutilizam máscaras e macacões.
Estatística x realidade
A prefeitura e o estado do Rio têm divulgado apenas taxas de ocupação, sempre abaixo de 100%, que na visão de funcionários do sistema de regulação não refletem a realidade atual de lotações e filas. Pacientes têm esperado horas e até dias por transferências no SUS.
O governo diz que a rede estadual está com 66% dos leitos de enfermaria e 80% dos leitos de UTI cheios, mas considera o sistema inteiro, e não só as vagas de covid-19. Já a prefeitura comunicou que a taxa de ocupação de todas as UTIs públicas está em 93%.
No Hospital de Federal de Bonsucesso, onde estavam previstos 170 leitos, mas só 27 foram disponibilizados por falta de profissionais, uma funcionária relata que um homem com sintomas de coronavírus chegou a morrer sozinho na terça (21) porque não havia leitos adequados.
Na UPA Magalhães Bastos, em Realengo (zona oeste), o médico Gustavo Treistman, 32 anos, relata que a situação piorou no seu último plantão, na segunda (20). Na sala vermelha cabem quatro, mas havia sete.
– Quando cheguei às 7h, o pessoal já avisou: não tem mais respirador, se precisar ser intubado não dá."
Dois faleceram por covid e dois com menos complicações conseguiram transferência depois de dois dias deitados ali. Os mais graves, porém, não tiveram a mesma sorte. Um estava na unidade havia cinco dias.
Diante da situação de desespero, a prefeitura de Marcelo Crivella (Republicanos) publicou na quinta (23) um edital para contratar mil leitos de UTI na rede privada até que sejam abertos mais leitos na rede pública e nos hospitais de campanha.
As obras municipais, no Riocentro (500 leitos), ficaram prontas no último domingo (19), mas ainda faltam funcionários e respiradores. É a mesma situação do Hospital do Fundão, ligado à UFRJ, que tem 60 leitos mas não tem profissionais para operá-los - só sete das 470 vagas foram preenchidas.
A prefeitura diz que está em processo de contratação temporária de mais de 5 mil pessoas para ocupar essas e outras unidades, das quais quase mil já foram efetivadas no hospital de referência Ronaldo Gazolla.
Os 10 hospitais de campanha ou modulares estaduais, do governo Wilson Witzel (PSC), que somam 2 mil leitos, também estão atrasados. Seriam inaugurados em abril, mas agora estão previstos para maio, primeiro no Leblon e no estádio do Maracanã.
Já na rede federal, a Justiça determinou nesta quarta um prazo de 48 horas para que os seis hospitais geridos pela União no Rio passem a liberar leitos livres para pacientes de outras unidades. O governo terá o mesmo prazo para informar quais unidades hospitalares móveis serão montadas pelo Exército.