Natural de Bento Gonçalves, na Serra, a médica Rosana Buffon trocou os trajes de frio para outros também pesados: os de proteção, para enfrentar a epidemia do coronavírus. Em entrevista ao Gaúcha Atualidade desta quinta-feira (16), ela conta como tem sido o trabalho de auxílio a pacientes com suspeita de covid-19 na região de Vicenza, norte da Itália, e como a comunidade local tem lidado com as medidas.
Confira a entrevista completa
Vimos uma foto sua com roupa de proteção. Essa é a proteção usada para atender pacientes?
É, sim. Uma proteção bastante eficaz, porque se a gente não tem essa proteção, a gente não trabalha.
A senhora trabalha com pacientes de coronavírus?
Eu tenho trabalhado como dermatologista em um ambulatório, mas a atividade tem sido bastante reduzida. Então, como tentativa de ajudar os colegas, eu me coloquei à disposição para trabalhar com pacientes positivos em suas casas.
Como é esse trabalho?
A gente recebe a notificação do médico da família, ou então por meio da central, um 0800. A partir deste momento, a gente faz uma verificação por telefone para ver a situação dos sintomas e, depois, de acordo com a necessidade, faz consulta na casa do paciente para ver os sinais vitais e entender a história dele. Por telefone, o paciente fica nervoso.
No início, quando aconteceu a primeira morte, como não tinha muitos casos, as pessoas acharam exagero (o isolamento).
Qual a situação da Itália na região de Vicenza?
A gente ainda está em lockdown. Aqui o isolamento foi muito rigoroso. Estamos em fechamento desde 11 de março, com comércio incluído. As escolas fecharam ainda antes, em fevereiro. Mas agora o isolamento continua porque os números estão caindo muito lentamente. As autoridades não se sentem em condições de liberar o isolamento.
Qual o número de mortos e casos confirmados em Vicenza? Como está em relação a outras regiões da Itália?
A situação em Vicenza foi mais controlada porque, não sei se recordam, a primeira morte ocorreu aqui, uma comunidade muito pequena. Quando tiveram essa morte, eles isolaram completamente. O governador tomou a decisão e foi criticado, mas foi muito válido.
Qual foi a decisão do governador?
No início, quando ocorreu a primeira morte, como não tinha muitos casos, as pessoas acharam exagero. Parou tudo, não entrava ninguém. Houve empresários que fecharam empresas. Mas, a partir daí, eles conseguiram fazer um estudo epidemiológico e ver o quanto de prevalência de casos tinha. Foi uma medida muito eficaz.
Quantos morreram em Vicenza?
Os dados de mortes eu não tenho atualizados. Eu não fiz a soma nos últimos dias, mas tivemos um aumento. Foi liberado um índice de mortalidade com relação ao ano anterior, de 20 de fevereiro a 20 de março. E viram que, em grande parte das cidades, o aumento da mortalidade chegou de duas a três vezes mais do que no ano passado. Na Lombardia, chegou a 10 vezes o aumento da mortalidade.
Aqui demoraram porque tinham pessoas de idade que não aceitava, visitavam os outros, iam em bar, faziam happy hou . Foi difícil a conscientização. Mas, a partir do momento que começaram a ver os dados, que eram cada vez mais próximos de nós, eles começaram a respeitar.
A grande discussão aqui em Brasília é com relação ao isolamento, vertical ou total. Pela sua experiência, o que é o ideal neste momento?
Eu acho que a Itália ter sido o primeiro país da Europa (a ser o foco do coronavírus) foi um estudo experimental. A Itália estava no escuro. Mas tem que levar em consideração vários fatores que podem alterar o grau de isolamento dos países. Aqui na Itália é diferente, por exemplo, da China, do Brasil.
Na China foi mais fácil, aqui demoraram porque tinham pessoas de idade que não aceitavam, visitavam os outros, iam em bar, faziam happy hour. Foi difícil a conscientização. Mas, a partir do momento em que começaram a ver os dados, que eram cada vez mais próximos de nós, eles começaram a respeitar. Tem a questão do impacto econômico, porque tem que avaliar o quanto é sustentável para a economia e em quanto tempo. Outra questão é estrutural: aqui tivemos tempo de capacitar o hospital, a população se sentiu confiante no que a autoridade estava falando. Não tinha distinção entre rico e pobre.
A partir do momento que a situação se torna próxima, a gente cai na real.
A sua região teve 940 mortos até agora. E na Lombardia houve 11 mil. A doença passa a ser uma realidade quando números viram rostos, é assim aí na Itália?
Eu digo como médica que, a partir do momento que vimos casos de colegas mortos, a gente se alertou muito e disse: "não é justo". A gente quer ajudar, mas tem que se proteger.
Os casos na comunidade começaram a acontecer e teve duas mortes aqui, um pai e uma filha. As pessoas entraram em pânico, porque era próximo. Então, eu acho que sim, a partir do momento que a situação se torna próxima, a gente cai na real.
Nos descreva o que a senhora usa hoje para ir visitar os pacientes.
Quando eu tenho que fazer o serviço da ambulância, a gente utiliza camadas de proteção e de álcool gel. A gente precisa tirar toda a roupa, tem cobertura que se usa em hospital, tem uma espécie de abrigo inteiro que cobre da cabeça aos pés e depois começa com luva, máscara, óculos, viseira, touca. Depois outra câmara de luva, protetor dos pés. Tem que seguir na sequência para não se esquecer. O mais importante é quando a gente se troca depois de sair da casa do pacientes, porque é mais complicado, há o risco de se contaminar.
Temos visto fotos de profissionais de saúde com marcas no rosto por conta dos trajes, das máscaras. Como é lidar com essas restrições?
São equipamentos caros, então a gente tem que usar várias camadas para manter a camada básica sempre. Entre um paciente e outro, a gente troca a camada mais superficial. E temos que nos cuidar muito para não levar o vírus de um lugar ao outro. É preciso estar limpo antes de entrar na ambulância e depois para sair de novo.
Aqui existe o temor de excesso de pessoas em UTI. Como é o sistema aí?
Eles tiveram que ativar novas unidades de UTI. Tem um hospital aqui que era novo e foi convertido para isso. Aqueles que necessitam de cirurgia tem que fazer a 60 km daqui, pois eles centralizaram os casos (de coronavírus) para evitar deslocamento. Os serviços de Samu foram mantidos. Não tivemos problemas caóticos como houve na Lombardia.
A senhora é de Bento Gonçalves, né?
Sim, tenho família, meu irmão mora em Bento. Trabalhei em Bento, no hospital, e fico tranquila com relação a estrutura. Morei em Porto Alegre também (..).
Com relação aos cuidados que se deve ter, como a senhora está aí na linha de frente, manda um recado para essas regiões onde conviveu.
Eu acho que a gente tem que pensar não só em nós mesmos, mas tem que pensar nos outros. Na possibilidade de contaminar outras pessoas. Esse vírus é um pouco sapeca, como se diz, porque ele pode continuar mesmo que estejamos bem. Essa atitude que a gente faz é uma atitude humana.
Temos que respeitar esse vírus nesse momento até que a gente ache uma estratégia eficaz para combater ele.
Estamos tentando proteger o sistema de saúde, para quando precisarmos, e proteger as pessoas que a gente quer bem. Evitar que se tenha um colapso, uma sobrecarga nas UTIs. Evitar que todas as pessoas envolvidas não sejam contaminadas, porque se a gente não tem elas, o sistema não funciona. Tem que fazer o que se pode, de acordo com a situação local. Mas temos que respeitar esse vírus até que a gente ache uma estratégia eficaz para combatê-lo.