A postagem de uma selfie no Instagram por um médico que estava trabalhando sozinho na Central de Regulação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) do Rio Grande do Sul expôs um atrito entre os profissionais do setor e a Secretaria Estadual de Saúde, responsável pela gestão do serviço. De um lado, os médicos reguladores queixam-se da falta de pessoal e de sobrecarga de trabalho, que estaria impossibilitando o atendimento qualificado às ligações para o fone 192 em uma área que compreende mais de 7 milhões de habitantes — ficam fora da lista apenas os municípios de Porto Alegre e Caxias do Sul/Vacaria e as regiões de Pelotas e Bagé, que mantêm setores de regulação próprios. De outro, o governo do Estado garante que o número de reguladores em atividade é suficiente para responder à demanda de forma "confortável".
No Samu, o primeiro atendimento é realizado por telefonistas, que fazem perguntas básicas ao interlocutor (qual o motivo da ligação, o endereço, o município e, em caso de acidente, o número de vítimas). Em seguida, a ligação é repassada a um médico regulador, que faz o provável diagnóstico, orienta a pessoa que está pedindo auxílio sobre as primeiras ações a serem tomadas e avalia a necessidade de envio de ambulância — e de qual tipo: unidades móveis de suporte básico (USB) ou avançado (USA).
O desabafo virtual foi postado em 17 de fevereiro. "Hoje enfrentei o mais tenso plantão da minha vida! Estar sozinho em meio ao caos... E, o que é pior, não dando conta! Foi horrível me sentir incapaz de atender a muitas pessoas que gritavam por socorro! Elas precisavam de atendimento, e eu não consegui nem atender o chamado...", escreveu o médico, que pediu para não ter o seu nome divulgado na reportagem. "Fiz o máximo que pude, fui além do meu limite! Mas eram muitos chamados, demais para uma pessoa só."
Segundo o Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), que desde 2012 vem alertando o Estado sobre uma possível carência de profissionais na Central de Regulação, o ideal seria que a estrutura contasse com 70 médicos, conforme determinação do Ministério da Saúde, mas atualmente apenas 28 estão lotados no setor.
— Este número (um médico para 7,4 milhões de habitantes) é completamente absurdo em qualquer lugar do mundo. É uma temeridade, um sistema fadado a comprometer a vida das pessoas — avalia Paulo de Argollo Mendes, presidente do Simers.
O secretário estadual da Saúde, João Gabbardo dos Reis, garante que o atual contingente de reguladores atende à necessidade da população.
— Isso (a definição do número de médicos reguladores por parte do ministério) foi feito em um período em que a regulação era completamente diferente do que é hoje. Era no papel, na caneta. Então, essa exigência é para uma outra realidade, de 13 anos atrás. Olha o que mudou em 13 anos na questão da informatização e da tecnologia — argumenta Gabbardo. — Tanto é que o Ministério da Saúde, na última reunião da Comissão Intergestora Tripartite, que reúne as secretarias de saúde dos Estados e dos municípios, deliberou que não haverá mais esses quantitativos. Essa (nova) portaria vai ser publicada nos próximos dias. Cada central tem uma necessidade, que será suprida com quantitativo adequado. Mas não existe mais esse número mágico.
"Ele fez um carnaval, um circo", critica secretário da Saúde
Entrevistado por GaúchaZH, o médico que postou a foto afirmou que, às sextas-feiras, tem cumprido o plantão sozinho ou, na melhor das hipóteses, na companhia de apenas mais um regulador:
— Isso tem sido recorrente. Os médicos sobrecarregados se estressam. E os atestados vão surgindo. A tela (do computador) fica cheia (de pedidos de atendimento). A gente precisa ter muita calma para entender o que está acontecendo. Quando existe uma demanda caótica, quatro horas de atendimento, um atrás do outro, a gente acaba se perdendo: manda ambulância que não precisa e, lá na frente, quando precisar, não vai ter ambulância. E isso vai te consumindo. É uma responsabilidade tremenda.
O secretário estadual da Saúde assegura que o momento em que o regulador permaneceu sozinho na central foi um fato isolado:
— Ele ficou durante algumas horas sozinho porque a escala previa dois médicos, o que era normal para aquele horário, e um dos médicos teve de se afastar do plantão por algum problema familiar. E o dr. Roberto (Schlindwein), que é o chefe dele, se colocou à disposição: "Tu queres que eu fique aqui para te ajudar enquanto isso?". "Não. Não tem problema. Pode ficar tranquilo". Porque em seguida ia chegar outra plantonista, como, de fato, chegou. Aí, no período que ele ficou sozinho, fez todo esse carnaval, esse circo de fazer selfie.
Outro médico da Central de Regulação, em e-mail enviado a GaúchaZH, diz que a escala normal deveria prever oito profissionais trabalhando simultaneamente durante o dia e seis à noite, mas, no momento, nunca ocorre de haver mais de cinco de dia e três à noite. Conforme escala enviada pela Secretaria Estadual da Saúde à reportagem, o horário com menos médicos prevê a presença de ao menos três médicos. O coordenador estadual de Urgências e Emergências do Rio Grande do Sul, Roberto Schlindwein, considera esse número adequado:
— O número de médicos que temos hoje, traduzido em força de trabalho por semana, é suficiente para atender à demanda que temos, com o software (programa de computador) que a gente usa, que é muito moderno. Então, dá para atender confortavelmente. A dificuldade maior é a adaptação dos médicos, com relação às suas outras atividades, a uma escala de plantão que atenda à necessidade da população. Isso gera atrito.
Mal-estar teria começado após implantação do ponto eletrônico
Na tentativa de otimizar os recursos humanos disponíveis na Secretaria Estadual da Saúde (SES), uma das primeiras medidas de João Gabbardo dos Reis ao assumir o órgão, em 2015, foi implantar o controle eletrônico de ponto dos médicos. Ele acha que esse foi o estopim para a atual insatisfação dos médicos ligados à Central de Regulação do Samu:
— Era muito comum os plantonistas irem lá, iniciarem o trabalho, saírem, irem para casa ou para outro hospital, e o plantão estava funcionando. Quanto tinha de ter cinco ou seis (médicos reguladores), dois saíam para fazer plantão em outro lugar, mas ficava lá o registro como se eles estivessem trabalhando. Isso não tem mais. Agora nós temos câmeras. Se ele sair, vai ficar registrado que está saindo.
A secretaria também controla o período em que os médicos permanecem conectados ao sistema, para avaliar a quantidade de trabalho e a produtividade dos médicos:
— A gente considera que esse número de 28 (reguladores) atende perfeitamente à demanda. Na média, o médico fica 60% logado e 40% não logado, ou seja, não está no atendimento. Ou ele está deitado, ou tomando chimarrão, ou café ou foi ao banheiro.
Uma das médicas reguladoras ouvidas por GaúchaZH, que também não quis ser identificada, reclama:
— Ele (chefe da Central) quer controlar o tempo que a pessoa fica logada no sistema, os horários que as pessoas fazem de intervalo. Isso sempre foi combinado entre os médicos. Se um estivesse mais cansado do que outro ou se tinha algum problema, a gente se acertava. Ele quis controlar coisas desse gênero, absurdas — comenta.
Outro ponto de discordância entre médicos e governo está na exigência do cumprimento da jornada de 30 horas semanais apenas com atendimentos — antes, seis horas eram dedicadas a treinamentos e ao aperfeiçoamento.
— Tínhamos seis horas de ensino continuado, de estudos. Nos foram tiradas essas horas devido à demanda. Eles dizem que, se a central tiver gente trabalhando as 30 horas, o número (de profissionais) dá conta. É uma sobrecarga muito grande. A gente não consegue ir ao banheiro — diz um médico regulador que pediu para ter a identidade preservada.
O diretor-geral da Secretaria da Saúde, Francisco Bernd, justifica:
— Há dois ou três anos, o coordenador montou um treinamento até em locais diferentes, no qual eles (médicos reguladores) tinham de ter presença. E o que ocorreu? O treinamento era montado para oito ou 10 médicos, apareciam um ou dois. Várias e várias vezes. As seis horas de treinamento se tornaram o quê? Seis horas de folga.