O principal motivo que leva uma pessoa a buscar atendimento médico, curiosamente, não costuma receber a devida atenção quando se torna recorrente. Ainda pouco compreendida pela medicina, a dor crônica – aquela que surge e demora a passar, depois até dá um tempo, mas logo volta para atormentar – pode ser, mais do que sintoma de algum mal, uma doença.
Problemas como dor nas costas, enxaqueca e incômodo nas articulações não são graves quando aparecem de vez em quando: geralmente estão relacionados a um desconforto pontual na postura, alguma atividade física ou mental particularmente desgastante que tenha levado ao seu aparecimento. O sofrimento passa a ganhar outro tom quando vai e volta por, pelo menos, três meses. Isso não é normal.
– A dor crônica vai aparecer sempre. Vamos supor que você tenha uma dor nas costas. Passa uma semana, ela melhora. Mas, 10 dias depois, volta. Você viaja, fica muitas horas sentado, ela retorna e piora. Isso é uma dor crônica. Não é que ela apareça durante três meses, todos os dias, na mesma intensidade, mas é uma dor recorrente – explica Mariana Schamas, pós-graduada em cuidados ao paciente com dor pelo Hospital Sírio Libanês, e cinesiologista, área profissional que estuda o movimento do corpo humano.
A dor é a mais frequente causa de sofrimento físico que compromete a qualidade de vida. Tem seu papel protetivo: é o que impede que se caminhe após torcer o pé, o que evita que se deixe a mão sobre o fogo por muito tempo. O que chama atenção dos médicos é que, quando esse desconforto acontece com frequência, muitos pacientes acabam se acostumando e aprendem a conviver com o problema – quando o correto seria perceber que a dor crônica é um sinal do corpo de que há algo errado e é preciso procurar um alívio.
– As pessoas vão negando o sintoma doloroso. Às vezes, até por medo do que tem por trás, achando que é muito grave. Ficam fantasiando e, mesmo inconscientemente, acabam não buscando ajuda – afirma o anestesiologista Luís Josino Brasil, professor na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Conviver com a dor crônica sem combatê-la é o que de pior se pode fazer para o corpo. Isso só faz com que o problema aumente.
– Na maioria das modalidades sensoriais, a gente se acostuma ao estímulo e, daqui a pouco, não sente mais. Um cheiro forte sempre por perto, por exemplo: a olfação se adapta para que não se perceba mais aquele cheiro. Com a dor, é o contrário: se você sente dor e não trata adequadamente, vai sentir mais dor. Ela se retroalimenta – completa Josino.
Sem dar sinais claros de que está ali, a dor crônica é difícil de ser explicada pelo paciente – pois pode não ter causas claras – e de ser compreendida pelo médico – pois não há como comprovar sua existência, a não ser pelo relato desse paciente.
Um problema com vida própria
Não há uma origem detectável para as dores crônicas. Talvez sejam fruto de esforço excessivo, talvez de estresse, talvez uma questão de genética. Talvez, também, originem-se de alguma dor aguda maltratada que acabe evoluindo para um problema maior. Por isso, é importante investigar as dores que persistam por mais do que o tempo esperado para a cura. Mesmo que esse tempo não seja os três meses que definem um incômodo como crônico. E que pareça nada mais do que uma dorzinha recorrente nas articulações.
O descaso é apontado como um dos principais fatores que influenciam no surgimento da dor crônica. Segundo os médicos, muitos pacientes não buscam o tratamento quando o sofrimento dura cerca de cinco dias, uma semana, imaginando que o problema vai se resolver sozinho.
– Com a dor crônica, via de regra, a gente não busca uma causa, porque ela tem vida própria. Pode até ter exercido um papel protetivo antes, mas acaba sobrevivendo a sua função no corpo – explica o médico Luís Josino Brasil.
E os efeitos podem ir além das já angustiantes pontadas pelo corpo. Sentir dores constantes causa alterações também no comportamento: a pessoa sente menos vontade de se mexer, de sair, porque qualquer movimento pode causar sofrimento. Mesmo situações que poderiam contribuir para o alívio dos sintomas, como a prática de atividades físicas e a distância de situações estressantes, por exemplo, acabam sendo deixadas de lado. Esse desconforto, quando crônico, é tão nocivo que pode afetar todos os aspectos da vida.
– A dor crônica imobiliza, deprime, faz a pessoa faltar ao trabalho, evitar situações sociais, vai paralisando. Não é frescura – define a cinesiologista Mariana Schamas, integrante da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (Sbed).
Síndrome do ovo e da galinha
Há uma série de comorbidades – nome que se dá a doenças relacionadas a um outro mal já identificado no paciente – que podem afetar quem sofre com a dor crônica. Quem tem desconforto frequente na coluna, por exemplo, pode acabar compensando as dores sentando-se com uma postura inadequada e, assim, desenvolvendo ainda mais problemas. Quando uma das pernas dói, talvez a pessoa compense com a outra, possivelmente gerando algum problema nos quadris.
A frequência de males associados à dor crônica é tão grande que os médicos definem essa relação como uma "síndrome do ovo e da galinha", pois não se sabe o que veio primeiro. Entre as principais comorbidades, não são as dificuldades físicas que se destacam, mas as psicológicas. Associadas a dor, inatividade e dificuldades de sono, além de problemas como ansiedade, irritação e depressão, costumam ser frequentes em quem sofre com dores crônicas.
– A sensação de que entendemos a dor, por considerá-la sintoma comum para o diagnóstico.
de muitas doenças, não preenche toda a dimensão em que ela se expressa em cada paciente e no mesmo paciente ao longo dos anos – garante José Tadeu Tesseroli de Siqueira, cirurgião-dentista e ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (Sbed).
Tamanha variedade de problemas associados também acaba contribuindo para que a dor crônica não seja vista como um problema em si, como se qualquer sofrimento físico estivesse associado a alguma outra uma doença. Mas se o mal já foi tratado e o desconforto continua, a própria dor pode ser o problema.
O sofrimento é subjetivo
Assim como não é possível saber, ao certo, o que causa a dor crônica, também não se tem como tratá-la sempre de uma mesma forma. Em primeiro lugar, porque cada tipo de dor – na cabeça, nas costas, nas articulações etc – exige uma intervenção diferente. Em segundo, porque até o mesmo tipo de dor pode afetar duas pessoas de maneiras bem distintas. Uma pode ter enxaquecas recorrentes em ambientes muito iluminados, e outra, quando não há luz suficiente no ambiente, por exemplo.
Isso porque o sofrimento é, também, subjetivo. Atletas de boxe, por exemplo, permanecem estrategicamente em pé após levarem um soco, quando a reação em uma situação normal seria um desenfreado "bater ou correr". Uma mãe que dá à luz de maneira natural sofre uma dor imensa, mas não se desespera porque sabe o significado desse sofrimento. Essa percepção diferenciada da dor também pode ter relação com problemas mentais e o uso de medicamentos.
– Depressivos e ansiosos têm o limiar à dor mais baixo e sofrem mais de dor crônica, como fibromialgia, reumatismo, dores lombares ou enxaqueca. Já os psicóticos com esquizofrenia, os autistas graves ou deficientes intelectivos graves costumam não valorizar a dor. Nesse aspecto, medicamentos antidepressivos também tendem a elevar o limiar à dor e diminuir o sofrimento – pondera Pedro Eugênio Ferreira, professor do departamento de psiquiatria da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Os médicos que estudam a dor são unânimes em apontar que simplesmente tratar a dor crônica com remédios não basta. Há um fator que contribui para isso: muitos dos pacientes que buscam alívio para esse sofrimento já não sentem mais o efeito de analgésicos. Alguns chegam a usar drogas mais fortes, como opioides, para aliviar o sofrimento. É nesses casos, em especial, que alternativas para se livrar da dor entram em jogo.
Para algumas pessoas, o alívio pode vir aliado a terapias alternativas, como massagens e acupuntura. Associado à aceitação e à aplicação do tratamento médico, esse tipo de intervenção pode contribuir para que o desconforto cesse.
– Desde que o paciente já esteja liberado pelo médico para buscar uma terapia complementar, todas as alternativas são válidas – afirma Afonso William Ribeiro, presidente da Associação Nacional dos Terapeutas (ANT).
Essa abordagem multidisciplinar em busca da diminuição da dor passa ainda pela reabilitação física, como em sessões de fisioterapia, e melhora da saúde mental, em que as perdas emocionais e cognitivas resultantes da convivência com o sofrimento constante são revistas e tratadas.
Saiba como diferenciar dor crônica e dor aguda
Dor Aguda
- Serve como alerta para o organismo de que algo não está bem. É um sintoma, uma reação.
- Dura um tempo determinado, geralmente menos de três meses, não é contínua ou regular e surge de repente.
- Como é o indicador de diversas doenças, não há tratamento único, é preciso curar a enfermidade que causa dor.
- Exemplos: colisão que deixa o corpo machucado (como bater em uma porta, por exemplo); pedra nos rins; dor forte no peito, que pode indicar um infarto; dificuldade na respiração, que pode ser causado por uma pneumonia.
Dor Crônica
- Pode ser sintoma de doenças existentes ou não ter qualquer causa demonstrável em exames, sendo, portanto, a própria doença.
- É mais duradoura, pode ser contínua, ter períodos regulares ou crises intermitentes, com duração superior a três meses.
- Além de medicação prescrita por médico, geralmente com analgésicos, é comum necessitar de antidepressivos, pois a dor atinge o lado psicológico do paciente, já que o imobiliza ou afeta o cotidiano. É preciso um tratamento não apenas com remédios, mas com uma equipe multidisciplinar que estude as causas físicas e psicológicas da dor.
- Exemplos: dor na coluna, lombar, alguns tipo de dor de cabeça (enxaqueca), dor do câncer, do nervo ciático, entre outros.