O Petrópolis, bairro de Porto Alegre conhecido pelo elevado número de casas históricas preservadas entre construções modernas e verticalizadas, possui atualmente 218 imóveis inventariados, ou seja, que têm as características externas protegidas. O número é 40,1% menor do que na relação anterior, de 2016, que continha 364 imóveis. Em 2019, houve mudança na legislação que alterou as regras para proteção do patrimônio.
O levantamento foi elaborado pela Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc), vinculada à Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa (SMCEC) da prefeitura.
— Atualmente, temos mais de 5 mil bens inventariados (na cidade). Os tombados são menos de cem — contextualiza a diretora da Epahc, Débora Regina Magalhães da Costa, em relação ao cenário geral da Capital.
O tema é polêmico e envolve diferentes pontos de vista. Os defensores da manutenção do patrimônio histórico, por exemplo, dizem que a lei em vigor na cidade favorece o setor da construção civil, o que poderia descaracterizar o bairro. Já os donos de imóveis afirmam que arcam com toda responsabilidade e não têm vantagens ao ter o bem inventariado.
As construtoras ressaltam que não escolhem regiões específicas para investir, enquanto a prefeitura alega que a legislação apresenta problemas que devem ser ajustados, mas que também trouxe benefícios. Todos esses lados foram procurados por GZH e têm suas opiniões detalhadas nesta reportagem.
A casa onde viveu o escritor Dyonelio Machado, no Petrópolis, por exemplo, se transformou em patrimônio cultural da Capital em 17 de novembro de 2022. Localizada na Rua General Souza Doca, 131, foi erguida em 1942 a pedido do autor de obras como Os Ratos e O Louco do Cati.
A residência é de propriedade particular, e os donos ainda podem contestar a decisão. Por outro lado, ativistas ligados à área cultural permanecem mobilizados para que o imóvel não tenha destino semelhante ao do também escritor Caio Fernando Abreu — a moradia do autor de Morangos Mofados foi demolida em julho do ano passado, no bairro Menino Deus.
A maioria dos 218 imóveis inventariados no Petrópolis está concentrada nos arredores da Praça Mafalda Verissimo, conhecida por ser ponto de encontro e de lazer dos moradores do bairro. Não há prédios de apartamentos nessa relação.
— Temos de pensar atualmente o que podemos preservar. Não podemos preservar tudo, infelizmente — reflete a diretora da Epahc.
O Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis do bairro Petrópolis começou em 2012 e levou uma década para ser finalizado — um caminho com vaivéns e discussões entre grupos, coletivos e associações favoráveis e outras contrárias a questões envolvendo o tema. A lista completa dos imóveis inventariados foi publicada no Diário Oficial de Porto Alegre (Dopa) de 17 de novembro de 2022.
Para a advogada Jacqueline Custódio, mestre em Patrimônio e integrante do Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (Compahc), além de coordenadora do Fórum Nacional de Entidades em Defesa do Patrimônio Brasileiro/RS, a situação envolve interesses de construtoras na região e está cercada por manobras políticas. Segundo ela, as alterações feitas na legislação sobre o tema beneficiaram a presença da construção civil no bairro.
— É por causa dos critérios da lei que diminuiu o número desses imóveis (inventariados) — diz, salientando que o tempo destinado para a Epahc avaliar o inventário foi diminuído com a nova regra, além de ter ocorrido decréscimo no número de servidores da equipe.
— Recentemente, houve o pedido da retirada da casa do Dyonelio Machado do inventário. Como tinha havido aquela consternação com a casa do Caio Fernando Abreu, a coisa acabou parando no Compahc e não foi retirada em razão da pressão popular — observa a advogada.
A legislação sofreu alteração, aprovada pela Câmara dos Vereadores, na gestão de Nelson Marchezan Jr. (PSDB), em 2019. Entre as mudanças, por exemplo, agora é permitido que os proprietários de imóveis inventariados realizem a Transferência do Potencial Construtivo (TPC).
O advogado Álvaro Jôffre Souza Arrosi, que defende os interesses do grupo Proteja Petrópolis, explica como funciona, na prática, uma TPC:
— Imaginemos uma casa inventariada de 300 metros quadrados, erigida em um terreno que possibilitaria a edificação de 2 mil metros quadrados. Neste caso, descontada a metragem já construída no lote, o terreno tem um potencial construtivo de 1,7 mil metros quadrados — exemplifica, acrescentando:
— Então, esse proprietário pode negociar no mercado da construção civil os 1,7 mil metros quadrados que ele tem no terreno dele.
A venda pelo proprietário não implica na construção somente no próprio terreno do imóvel. Uma vez arrematado o potencial construtivo, a empresa que o adquiriu poderá usá-lo em seus projetos, inclusive em um empreendimento distante dessa propriedade.
— A crítica que se faz é que os índices aumentados para a construção nova são tão significativos que a construção preservada perde a exuberância, porque fica parecendo um playground ou casa de bonecas ao lado do edifício novo. Ou seja, não há mais compatibilização em termos de altura e volumetria frente ao imóvel que é patrimônio arquitetônico cultural — detalha Arrosi.
Por outro lado, o proprietário da casa inventariada recebe o valor pela parte negociada do potencial construtivo. Ele só pode vender uma vez e terá de empregar os valores recebidos na manutenção ou restauração do imóvel inventariado.
Como imóvel inventariado não possui restrições para venda, locação ou qualquer forma de alienação em sentido amplo, o proprietário terá o benefício de ficar com o bem mais valorizado pela classificação de patrimônio, para uso próprio ou eventualmente para locação ou venda.
O superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no RS, Rafael Passos, também identifica mudança no cenário em razão da nova lei. Para ele, a alteração feita em 2019 enfraquece a defesa da preservação do patrimônio na Capital. Conforme Passos, que atuava há pouco tempo como presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no Estado (IAB-RS), é preciso entender como essa lei nasceu.
— Não houve um debate público sobre a sua construção. A Câmara (dos Vereadores) decidiu derrubar a lei (anterior) por um vício de origem. Não foi discutida sequer dentro do Conselho Municipal de Patrimônio e com a sociedade — critica.
Enquanto isso, o racha entre moradores do bairro é notório, além de ser antigo.
— Acho que tinha de preservar, não tenho nada contra edifício. Que se faça em uma zona nova, mas botar abaixo tudo o que estão botando, na calada da noite, também é uma pena. Descaracteriza um bairro antigo — pensa Lúcia Verissimo, esposa do escritor Luis Fernando Verissimo, que vive com a família no imóvel inventariado que pertenceu a Erico Verissimo na Rua Felipe de Oliveira.
A médica Janete Viccari Barbosa, que mora há 50 anos no bairro, pertence ao grupo Proteja Petrópolis. A mobilização conseguiu a preservação da caixa d'água da Praça Mafalda Veríssimo e da Casa da Estrela, situada na Rua Guararapes, que atualmente está adotada pela Associação dos Escultores do RS (Aeergs).
— O Petrópolis é um dos prediletos, no momento, da construção civil. Isso se deve ao novo Plano Diretor, que entrou em vigência no ano 2000 — opina.
Para a médica, a situação está fora de controle, com prédios se multiplicando velozmente na região. Ainda conforme Janete, o Proteja Petrópolis seguirá sugerindo imóveis para serem inventariados.
Sinduscon afirma "que não escolhe bairro"
O Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado (Sinduscon-RS) se posicionou sobre o tema do inventário do bairro Petrópolis. A vice-presidente, Sandra Axelrud Saffer, afirmou à reportagem que a entidade "não escolhe bairro".
— Não existe essa coisa de dizer "escolhemos este bairro para fazer isso ou aquilo" — garante, dizendo ainda que o inventário é um assunto técnico e jurídico vinculado ao Executivo municipal.
Para Sandra, não cabe ao Sinduscon resolver a questão do inventário do Petrópolis.
— Petrópolis é um bairro bonito? Sim. Tem infraestrutura? Sim. Tem qualidade de vida? Sim. Quem diz isso é a população de Porto Alegre. Não é uma questão do construtor ou do incorporador dizer — finaliza.
Contrários ao inventário questionam critérios
O advogado Daniel Nichele acompanha a polêmica há anos, tendo defendido vários clientes envolvidos na questão. Na interpretação dele, para os proprietários dos imóveis inventariados até 2019, quando se definiu a nova lei, não havia contrapartidas. Simplesmente, ficavam sem respaldo e nenhum tipo de desconto.
Conforme relata, após a criação da Lei 12.585, de 2019, os proprietários puderam buscar contrapartida, o que compensa a desvalorização trazida pelo bloqueio do imóvel.
De acordo com o advogado, há pedidos de impugnações feitos por ele naquela época que ainda hoje não foram analisados.
— Tive de judicializar alguns casos e liberei algumas casas. Infelizmente, algumas até para demolição — recorda, mencionando ainda que o correto seria os proprietários terem desconto no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) em razão de terem o imóvel inventariado.
Vinculado à Associação de Moradores do Bairro Petrópolis Atingidos pelo Inventário da Prefeitura (Amai), que é contrária aos critérios empregados para a proteção das casas, o advogado Márcio Divino se criou na região e discorda de vários pontos em relação aos dados utilizados para se inventariar um imóvel.
— No inventário, todo problema cai no colo do proprietário. Uma vez definida tua situação dentro dessa lista, tu não sai nunca mais, e todo custo é teu — percebe.
De acordo com Divino, são aproximadamente 10 mil proprietários envolvidos nessa questão na Capital.
— No Petrópolis, começou de uma forma muito estranha (o inventário). Saíram a passear pelo bairro e disseram "isso aqui é bonitinho, isso aqui é grande, isso é exclusivo do bairro". Uma série de critérios malucos — diz, ressaltando que até os armazéns de esquina foram apontados como característica do bairro, o que, na opinião dele, não é uma marca da região e sim de toda cidade até algumas décadas passadas.
Questionado se as mudanças na lei não foram positivas para a Amai, Divino expõe sua impressão.
— Na pior das hipóteses, ela veio a ser uma lei legal. Percorreu os caminhos que o ordenamento jurídico disse que tinha de ter (...) Continua sendo um inventário que não tem real base. Segue sendo um "achei".
A empresária Rosangela Blumenthal Sequeira tem opinião mais flexível em relação às construções no bairro, onde vive desde 1989.
— Sou a favor de construções, mas não prédios altíssimos, alguma coisa coerente — observa, citando que um edifício construído em uma rua perto de onde mora tira o sol de seu imóvel em determinado horário do dia.
— Tenho ao lado uma casa que foi tombada e vendida. Simplesmente o proprietário está deixando ela cair — argumenta, salientando que há foco de ratos no local e que vândalos invadiam o espaço com frequência.
Na avaliação dela, o inventário não oferece benefícios aos proprietários.
— Tombaram os nossos imóveis e não temos vantagem alguma. Continuamos pagando o IPTU e todas as taxas vêm normais. E se tu precisar reformar o teu imóvel, a prefeitura não vai autorizar nada que mude a fachada.
O que diz a prefeitura
A prefeitura destaca que "a lei tem problemas que devem ser ajustados, mas trouxe os benefícios urbanísticos e a Transferência do Potencial Construtivo (TPC). Então muitos proprietários que eram contra o inventário, hoje pedem para seus bens serem inventariados. Precisamos é nos debruçarmos sobre ela e ajustá-la".
A presidência da Câmara de Vereadores afirma que, neste momento, não tramita na Casa nenhum projeto com sugestões de mudanças na lei do inventário do patrimônio cultural.
Saiba mais
Tipos de imóveis inventariados
- De estruturação: é a edificação que, por seus valores, atribui identidade ao espaço e constitui elemento significativo na paisagem onde se encontra, tendo interesse de preservação.
- De compatibilização: edificação que tem relação com o imóvel de estruturação, por estar localizada nas proximidades, por exemplo, e o seu entorno. Pode ser demolida, desde que a nova construção qualifique o espaço.
Primeiramente, os imóveis são bloqueados para estudos. A lei de 2019 estabelece prazos para este bloqueio (seis meses, eventualmente renováveis por mais seis). Ao final do período, é necessário decidir quais são reconhecidos como de estruturação ou de compatibilização.
Se for de estruturação, o imóvel precisa alcançar pelo menos três dos cinco valores existentes: histórico, técnico, de conjunto, paisagístico e morfológico. No segundo caso, de compatibilização, é listado por estar perto ou relacionado a um conjunto já estruturado.
Imóveis tombados
As construções tombadas são aquelas em que se busca preservar integralmente as características originais da edificação, externas e internas, conforme sua importância.