É na tranquilidade do bairro Lageado, na zona sul de Porto Alegre, que os cavalos resgatados pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) em situação de abandono ou de transporte ilegal de carga são abrigados após cada operação. Eles não recebem um novo nome, para que a equipe não precise se desapegar deles em um curto período de tempo, mas ganham comida, atenção e cuidados.
Por lá, os animais ficam até que os donos vão para recuperá-los ou que alguém tenha interesse e capacidade em fazer uma adoção. A permanência mínima costuma ser de um mês, mas há equinos que seguem há 10 anos no local e não têm mais condições de viver em outro lugar.
Só em 2022, foram 378 cavalos resgatados de vias públicas da Capital — média superior a um por dia. Desse total, quase 10% não retornaram aos donos por ter sinais de maus-tratos, diagnosticados em consulta veterinária após a abordagem.
A alimentação e a desidratação são os principais problemas decorrentes dos abusos sofridos. Outra causa comum para o recolhimento é quando os animais se desgarram e invadem pistas, colocando em risco a própria vida e a de quem transita pelas vias.
— Vemos ocorrências horríveis, éguas prenhas trabalhando até cair e parindo no meio da rua, ou ainda bichos que estão tão mal que não têm mais força para levantar do chão — relata Luís Fernando Azambuja, fiscal da EPTC.
— É difícil conseguir fazer um flagrante que gere boletim de ocorrência, pois muitas vezes o próprio dono usa o bicho tudo que dá, e quando o cavalo fica doente chamam a gente para remover o animal. Se escondem de nós, e quase nunca alguém denuncia onde o dono está para ser responsabilizado — complementa.
Nos últimos cinco anos a quantidade de bichos resgatados cresceu 50% — em 2018 foram 252, contra 378 em 2022. Dos 1.447 animais recolhidos no período, 10,9% tiveram maus-tratos comprovados pela inspeção veterinária. A maioria, 893, retornou aos proprietários.
Uma lei municipal determina que carroças com tração animal só podem circular na região das Ilhas ou no Extremo-Sul, na zona rural da cidade. Assim, quando um ou mais animais são avistados soltos em vias ou com sinais de maus-tratos, um chamado ao 118 ou ao 156 aciona a equipe de Equipe de Fiscalização de Veículos de Tração Animal, operante 24 horas por dia.
— Qualquer hora que chega o chamado, tem que pegar o caminhão e ir buscar o animal — explica Thiago Ferrão, 40 anos, natural de Camaquã e responsável por cuidar dos cavalos.
A vida de Ferrão gira em torno de cavalos desde sempre, ele conta. Há dois anos, é contratado pela prefeitura para cuidar dos animais que permanecem na chácara da Zona Sul arrendada para comportar os equinos.
Do começo do ano até esta sexta-feira (10), foram 15 adotados. Há ainda 24 animais no abrigo, que dispõe de muito pasto, sombra de árvores e água fresca, além de duas porções de cerca de 2,5 quilos de ração por dia e generoso maços de feno.
Cuidados diários
O cuidado com os cavalos exige uma rotina de acolhimento, higiene, alimentação e caminhadas no espaço rural. Há a necessidade, ainda, de afastar os que não são castrados, pois estes brigam entre si. Uma parceria com o curso de Veterinária da UFRGS promove a castração, resolvendo as possíveis rusgas entre os machos. De resto, é admirar o crescimento dos animais e tomar cuidado com os traumas que eles trazem. Cada um é microchipado e tem os dados de peso e condição física monitorados em cada abordagem.
— Cada um deles teve uma vida puxando carroça, sofrendo diferentes violências. Muitas vezes chegam aqui cabisbaixos, fracos, arredios, e quando ficam fortes se mostram mais confiantes e até um pouco agressivos, como forma de defesa daqueles agressores que criaram eles. Mas com todos nos acostumamos e aprendemos a lidar, mesmo que alguns sejam mordedores — brinca Ferrão.
Adotantes preenchem formulário manifestando intenção. É preciso comprovar a disponibilidade de 2 hectares para cada cavalo pastar e viver livre, além de atestar a finalidade pretendida para o bicho. Após a adoção ser celebrada, são feitas vistorias semestrais para verificar se o animal está sendo bem tratado.
Exceção entre os sem-nome, Ceguinho foi resgatado em 2013, no Arroio Dilúvio, sem visão e deixado lá para morrer, contam os agentes de trânsito. Chegou sem conseguir se firmar sobre as próprias pernas e, 10 anos depois, virou o mascote da EPTC — sem chance de adoção.
Estima-se que a idade dele seja de aproximadamente 20 anos. Com a cavidade ocular direita vazia e o olho restante do lado esquerdo todo branco, é com as orelhas e com o nariz que ele sente a presença de estranhos, os cliques fotográficos e a aproximação de mãos, agora transmissoras apenas de carinho.
— (Alguns carroceiros) Furam o olho direito pra os cavalos não se assustarem com os carros. Quando ficou cego do outro olho, abandonaram para deixar morrer sozinho no Dilúvio — diz Ferrão, que lembra ter erguido o animal nos braços para transportá-lo.