Quem vê a égua Victória forte e saudável, hoje, não a reconheceria se a tivesse encontrado no outono retrasado: magricela e, de tão fraca e mansa, amarrada apenas por cadarços em uma garagem. A potra, com menos de dois anos, foi adotada por Ivone Michielon em setembro de 2021 e hoje vive em um lar feliz, comendo e descansando junto a outros animais.
— A Vic foi um amor à primeira vista. Eu olhei para ela e disse: é esta aqui — relembra, com carinho, a empresária aposentada ao falar da companheira, levada para seu sítio de dois hectares e meio na Lomba do Pinheiro.
Esse encontro só foi possível graças ao trabalho realizado pela ONG Pé de Chulé, de Porto Alegre, especializada no resgate, no tratamento e na reabilitação de cavalos vítimas de maus-tratos.
A entidade surgiu de uma ação desenvolvida por 14 amigos, em 2015, para salvar animais depois de uma enchente na Praia de Paquetá, em Canoas. Após o episódio, o grupo seguiu realizando a atividade. Foi somente em dezembro de 2016, com o primeiro resgate de um cavalo, que os amigos decidiram se voltar exclusivamente à causa equina.
Pé de Pano, como é conhecido o cavalo de 18 anos, é da raça crioula. Ele havia sido roubado e acabou sendo resgatado em uma região de tráfico de drogas, com uma pata lesionada. Sem uma sede definida, os membros se mobilizaram e conseguiram um sítio em Camaquã para abrigá-lo.
Com o aumento no número de resgates, sobretudo na Região Metropolitana, onde moram os voluntários, o deslocamento até Camaquã foi se tornando inviável. Assim, os amigos decidiram se unir para alugar um espaço mais próximo, e, em dezembro de 2020, 12 cavalos se mudaram para o novo local, de aproximadamente 30 hectares. Localizado no bairro Lami, o sítio conta com uma infraestrutura completa para o tratamento dos animais, com baias e UTI, campos para correrem livres, além de uma praia para se refrescarem.
Apenas três ONGs no RS têm foco em cavalos — incluindo a Pé de Chulé, que possui a maior abrangência geográfica de atendimento. O nome foi escolhido para representar a entidade com leveza e riso mesmo em meio a situações difíceis. Atualmente, 63 cavalos moram nas dependências do santuário equino, recebendo cuidados diariamente de uma equipe composta por 16 pessoas, entre voluntários e veterinários — dois deles inclusive se mudaram para lá para acompanhar integralmente a rotina dos bichos.
A Pé de Chulé atua por meio de denúncias. O primeiro passo é acionar a prefeitura do município para que tome providências. Quando nada é feito pelo poder público, os voluntários se deslocam para resgatar os cavalos, seja em área pública, registrando ocorrência de abandono; ou privada, por meio da conscientização do tutor para que efetue a doação para a ONG — o que tem ocorrido em 100% dos casos. Desde 2020, a Pé de Chulé já resgatou 79 cavalos — mas, destes, 16 não resistiram e morreram.
A organização se sustenta com doações, campanhas de apadrinhamento e outras iniciativas, como eventos e brechós. A presidente da ONG e gestora comercial Ana Paula Sena explica que são necessárias quatro toneladas de comida por mês e que o custo mensal chega a R$ 20 mil, entre veterinário, caseiro, comida, infraestrutura e remédios.
— Os animais nunca chegam 100% para nós. Ou é deitado (quando o cavalo já não consegue mais levantar e fica à beira da morte), ou em estado gravíssimo, lesão grave nas patas… Todos chegam em situação precária — lamenta.
Segundo a médica veterinária Cristina Dieckmann, entre os principais problemas estão desnutrição e desidratação severa, alta carga parasitária e ausência de vacina, além de insuficiência renal, problemas articulares, anemia, que vêm em “combo”. Um dos grandes erros percebidos no manejo dos bichos que chegam é a alimentação com milho, mais barata, mas que causa cólicas — em 80% das vezes, são fatais.
— É uma coisa bem complicada e triste — lastima a veterinária.
Além disso, todos os cavalos apresentam problemas de coluna devido às cargas puxadas em carroças.
— Apesar de serem mais fortes, ao mesmo tempo são sensíveis — salienta a presidente da ONG.
Conforme os cavalos chegam, a veterinária realiza exames e trata-os com soro, antibióticos, plasma — gerando um alto gasto com medicamentos. Aqueles com muitas sequelas nunca poderão ser largados no campo, devido a problemas crônicos, como fraturas consolidadas — problemas que o impedem de levar “vida de cavalo”, conforme explica Cristina. Dos 63 equinos no santuário, 28 estão em tratamento integral e não podem ir para o campo. Por causa dos maus-tratos, 90% dos animais que chegam não confiam nas pessoas.
— Eles chegam com a memória de que qualquer coisa que eles façam, vão apanhar. Com o tempo na reabilitação, a gente vai mostrando que eles só vão comer e ganhar carinho, respeito, não vão trabalhar — explica a veterinária.
Assim, vão perdendo o medo, mas o processo é demorado:
— Eles voltam a confiar, se tornam muito amorosos. Dos 63 que temos atualmente, só dois ainda demonstram alguma reação agressiva.
Responsabilização do poder público
A principal luta da ONG é pela conscientização das pessoas sobre a exploração dos animais. A entidade defende a responsabilização do poder público no oferecimento de condições adequadas para os trabalhadores, de modo a não necessitarem dos cavalos, além de leis de proibição de carroças em vias públicas.
De acordo com a entidade, os piores casos ocorrem na Região Metropolitana, onde alguns municípios já possuem essa lei, mas não fiscalizam. As três cidades campeãs nas ocorrências de resgate são Alvorada, Canoas e Viamão.
— O cavalo crioulo é o símbolo do Rio Grande do Sul, mas, infelizmente, nós não cuidamos do nosso símbolo, que ajudou tanto a gente a lutar nas guerras. Só quem ama cavalo, quem convive com cavalo. — lembra Ana. — (Os outros) só se sensibilizam quando o cavalo está caído no chão. Enquanto estiver puxando carroça, dizem que está bem.
Adoção
Depois do resgate e da reabilitação, os cavalos são liberados para a adoção, explica Ana Sena. No entanto, a presidente da Pé de Chulé lembra que nem todos serão adotados, visto que alguns possuem sequelas dos maus-tratos ou estão muito velhos, sem dentes. É o caso de Guerreiro: resgatado em Viamão, chegou à ONG com 230 quilos, desnutrido. Os voluntários lutaram por um ano para salvar sua vida. Hoje, aos 28 anos e sem dentes, consegue comer somente papas.
Esses cavalos não podem ser usados para mais nada, apenas como "cortadores de grama", reforça Ana. Ela conta que muitas pessoas chegam procurando cavalos para montaria, mas os animais possuem traumas físicos e psicológicos, o que inviabiliza esse plano. O objetivo da adoção, portanto, é proporcionar bem-estar ao animal. O responsável, então, assina um termo de adoção e participa de entrevistas, além de receber uma avaliação no espaço onde manteria o cavalo. Segundo a organização, de 10 pessoas que pedem informações sobre o processo, apenas uma aceita. No total, 10 pessoas já adotaram cavalos da Pé de Chulé — como Ivone, tutora de Victória.
— O cortador de grama já foi eliminado, ela pasta e, em contrapartida, tenho adubo que vai para a minha horta. É uma grande vantagem fazer o bem para o animal, e ela estar aqui, livre e solta, mansinha — afirma, ressaltando ainda a inteligência de Vic.
Ivone também destaca que o animal não gera muito trabalho ou custos e que, tendo um campo com grama e pastagem, vale a pena. Além disso, ressalta que a égua chegou vacinada, vermifugada e que recebeu orientações e apoio da ONG.
Como ajudar
É possível ajudar a ONG Pé de Chulé por meio de doações, se tornando voluntário, bem como por meio de adoção ou apadrinhamento — 18 cavalos da entidade são apadrinhados. Para mais informações, é possível entrar em contato através do Instagram @grupopedechule.
Produção: Fernanda Polo