Por Jorge Barcellos
Historiador, doutor em Educação pela UFRGS
Uma campanha de design propõe a criação de uma marca para Porto Alegre. Descrita como um processo de place branding, isto é, divulgação de lugar, suas premissas são protagonismo voluntário, autoria coletiva e propriedade comunitária, o que resultou em três versões: “caminhos”, “formas” e “horizontes” (em votação em marcapoa.com.br).
A proposta tem contradições. A primeira é a defesa da ideia de mercado. Designers podem adorá-las, afinal é seu ganha-pão, mas os sociólogos, não. Associar uma marca à cidade nada tem de inocente. É uma operação na qual se defrontam dois sistemas irredutíveis: um, a cidade, com seus conflitos, sua luta social, suas situações de exploração e desigualdade e, outro, um sentido estabelecido por marcas que querem passar uma visão positiva do lugar. A própria descrição da metodologia “democrática” na construção das propostas por seus organizadores nada tem disso: o projeto reivindica a autoria coletiva, mas que autoria coletiva é essa? A de uma enquete com depoimentos de 120 pessoas de 40 bairros que ofereceram suas percepções para uma equipe de “notáveis”. O termo “democracia” esconde a construção pelo discurso competente do design.
A critica de Jean Baudrillard ao universo das marcas em O Sistema de Objetos se aplica ao projeto: as marcas propostas fazem uma “indução forçada” da cidade desigual a uma cidade igual, tratando-a como um mercado. É a mesma “decupagem social” de que fala o autor com a qual impõe-se uma visão que coloca os problemas sociais para baixo do tapete. Um conceito da publicidade não pode resumir o que é a experiência de ser porto-alegrense, o sentimento de viver em Porto Alegre. O que as marcas propostas fazem é reduzir um lugar à linguagem de consumo.
As marcas propostas querem resumir a história e a cultura da cidade – e é nisso que elas fracassam. Colocá-la um rótulo, ainda que repleto das melhores intenções, reforça estereótipos de consumo turístico. Seu efeito é fazer desaparecer as contradições sociais, colocando em seu lugar o imaginário burguês de harmonia. Quer vender uma cidade idealizada. É por isso que seus organizadores só tiveram sucesso em sua criação: eles montaram grupos de discussão que correspondem a uma forma de narcisismo coletivo.
Ao contrário de nos unir, a marca corrói a ideia de comunidade em que se baseia porque é design, não história. Na cidade do design, não há moradores de rua; na cidade das formas gráficas, não há lugar para a vergonha sentida pelos pedintes de nossas sinaleiras. E o pior é a versão “horizontes”, que vê Porto Alegre como “justa, plural e inclusiva”. A cidade que viu um negro ser assassinado por seguranças de um supermercado é isso mesmo?
A crítica de Gilles Lipovetsky em A Sociedade da Sedução também se aplica: as marcas propostas são mais imagens publicitárias a invadir os muros das cidades e a ocuparem o mercado local. Elas transformam a Capital em mais um elemento do “espetáculo das marcas”, forma do capitalismo de sedução de que fala o autor. O que seus organizadores usam como exemplo positivo, a expansão planetária das marcas pelo ambiente urbano, é justamente a imagem do horror que é transformar a cidade num produto de grife.
É isso o que queremos? Sai o símbolo do Laçador e entra a versão “caminhos”? O problema é a premissa oculta de que marcas são equivalentes de símbolos quando não o são. Consideram-se o brasão, a bandeira, o hino e o Laçador símbolos de Porto Alegre porque eles representam valores profundos da comunidade. São produtos da história. A marca, ao contrário, é produto do design e, portanto, lida com os aspectos superficiais da cidade. Para o design, tanto faz se é uma cidade ou um relógio: seu processo é o mesmo. Para Byung Chul Han, a marca produz uma comunicação sem comunidade, ao contrário dos símbolos, que geram uma comunidade sem comunicação.
Símbolo (symbolon em grego) é o sinal de reconhecimento entre amizades hóspedes (tessera hospitalis), e a marca (charagma) é o sinal especial de um fabricante ou comerciante. O símbolo transforma o estar-no-mundo em estar-em-casa; a marca adequa o estar-no-mundo à lógica do capital. Os símbolos precisam do tempo para se afirmar; as marcas nascem prontas pela arte do design para transformar a cidade não em um lugar habitável, mas em espaço de compras.
É preciso refletir bem sobre o que queremos quando elegemos uma marca para Porto Alegre. A marca destrói a duração porque nasce com o objetivo de forçar mais o consumo, o consumo da cidade. Se a cidade for apenas consumida, a experiência de viver nela não será mais possível. A razão é que o símbolo é uma prática ritual, e a marca reduz a dimensão estética da vida em comum ao econômico. Não devemos ceder à coação da produção. Das smart cities às marcas metropolitanas, é sempre das conexões de nossa história aos fluxos de reprodução do capitalismo neoliberal de que se trata.