Em 2020, Porto Alegre ganhará uma nova pista de skate. Parte do projeto do trecho 3 da orla do Guaíba, que teve as obras de revitalização iniciadas em outubro, a pista de 6,1 mil metros quadrados pode consolidar a cidade como referência no esporte: a expectativa é de que atraia olhares — e shapes — do mundo inteiro. Conforme a prefeitura, trata-se da maior da América Latina.
— Será certificada pela Confederação Brasileira de Skate. Colocaria Porto Alegre na rota de grandes eventos, inclusive internacionais — aposta o secretário municipal de Infraestrutura e Mobilidade Urbana, Marcelo Gazen.
A novidade deve ser inaugurada até outubro do ano que vem, um capítulo novo de uma história de quase meio século. Da aparição do chamado "surfite" nas lombas da cidade à ascensão de nomes como Luan Oliveira (o "Neymar do skate") passaram-se mais de 40 anos.
Se hoje a pista do IAPI é compartilhada por jovens de todas as classes sociais, o skate surgiu na Capital na década de 1970 por meio de um público de maior poder aquisitivo, lembra Régis Lannig, presidente da Federação Gaúcha de Skate. Os equipamentos eram importados dos Estados Unidos, e a principal loja da época era a South Shore, na Galeria Champs-Elysées, no Moinhos de Vento. Os pioneiros eram, na maioria, surfistas, seguindo a tendência da Califórnia, onde foi criado o skate na década de 1950 como uma alternativa a períodos de poucas ondas.
Reportagem de 1976 de ZH definiu a elite do skate porto-alegrense como os "magros da 24 de Outubro" — nas palavras do repórter, um grupo de cabeludos que usava calça Lee desbotada e camisa de meia. A lomba da Barão de Santo Ângelo era uma das preferidas para a prática. Eles andavam mais de madrugada, escondidos da polícia, que apreendia os equipamentos e levava o dono para a delegacia.co
Régis fez a estreia na década seguinte, mas ainda viveu a fase de apreensão de equipamentos. Comemora que o cenário seja outro. Em 2020, pela primeira vez, o skate fará parte do programa olímpico, no Japão.
— Eu cheguei a pegar a fase que a polícia te agredia por estar andando de skate na rua. Antigamente, andar de skate era feio, agora, se quer parecer legal, descolado, bota um skate debaixo do braço e vai para a rua.
A pista da orla do Guaíba:
— Terá cerca de 6,1 mil metros quadrados, o equivalente a quatro quadras e meia de futebol 7.
— Serão quatro formatos na mesma pista de pavimentação em concreto armado, polida manualmente: bowl (formato de piscina), flowpark (piscina com corrimões e outros obstáculos), snakerun (formato de uma grande serpente, semelhante à do Marinha) e skate plaza (algo como a do IAPI, com corrimões, escadarias e uma pequena bowl no meio).
— Integra o projeto arquitetônico de Jaime Lerner, mas contou com a participação de arquitetos e projetistas do ramo do skate.
— A previsão é começar a execução da pista no primeiro trimestre de 2020, com prazo de oito meses. Deve ser entregue junto com o trecho 3 da orla, até outubro.
— O valor de contrato da pista é de R$ 2.452.181,29.
A tradição da pista do Marinha
Em uma paineira de quase 20 metros no Parque Marinha do Brasil, há dezenas de tênis pendendo dos galhos. É a materialização de uma tradição: quando os calçados gastam, furam ou esfolam, o skatista ata os cadarços e joga eles para cima. E daí sente que faz, de alguma forma, parte da história da pista mais antiga de Porto Alegre.
A árvore dos tênis fazia sombra para alguns dos autodeclarados "dinossauros" do skate no final de tarde de domingo passado — com uma vista privilegiada do pôr do sol no Guaíba. Vestindo chinelos, uma bermuda verde e um colar com uma pedra da lua no peito (para lhe proteger dos tombos da pista e da vida), o restaurador de móveis Adu Marzo, 42 anos, faz manobras por ali desde 1993. A frequência não diminuiu desde a adolescência: jura que vai todo dia depois do trabalho, permanecendo umas cinco horas.
— Tem um feeling bom. E aqui eu fiz quase todas as amizades que eu tenho na vida.
Em formato snake-run, a grande serpente de concreto data de 1979. Hoje professor de história, Alexandre Fornari, 58 anos, foi um dos primeiros a praticar nela. A pista pode ter popularizado a prática, mas, na avaliação dele, era uma forma da polícia ficar de olho nos jovens naquela época.
— Quando inaugurou, era cercada por uma tela de 1m80cm. O parque dizia que era pra proteger, mas, na verdade, colocava todo mundo ali dentro e a polícia controlava, com um brigadiano na entrada e outro na saída.
Nessa época, skatista andando na rua era tratado como criminoso, segundo ele. Fornari mesmo teve três skates recolhidos. Adolescente, participou do primeiro torneio de skate na pista, mas não deixou as ruas. Seu local favorito era a chamada lomba da hidráulica, na Barão do Guaíba, Menino Deus, bairro em que morava. Foi onde conheceu o "surfite", como era chamado na época, por ser uma espécie de surfe no asfalto. Lembra quando um amigo contou-lhe, animado, que viu gente "fazendo uma coisa muito estranha com uns carrinhos" por ali.
Aos 14 anos, cortou um pedaço de madeira com serrote, acoplou rodinhas de patins velhos e, de sucata, fez seu primeiro skate. Sem muita noção de dimensões, fabricou ele com 51 centímetros de comprimento e 13 de largura — uma miniatura ao lado de um dos seus últimos shapes, de 83 cm por 24 cm. Guarda o "Nº1" até hoje em casa, em Guaíba, na Região Metropolitana, com uma dúzia de outros skates seus e de amigos, cujas esposas ameaçavam colocar no lixo.
Nesse pequeno museu particular, também tem uma pilha de revistas que chegavam três meses depois de serem publicadas nos Estados Unidos. Com um dicionário ao lado — era um sufoco traduzir, ninguém falava inglês — , os guris viam as fotos e tentavam reproduzir as manobras na rua.
— Só tinha essas revistas na banca da Praça da Alfândega. Chegavam dez, era de quem pegasse primeiro. Dava briga — diverte-se.
Pista do IAPI é sonho de consumo Brasil afora
Em São Paulo, o sonho de todo skatista é vir para Porto Alegre andar na pista do IAPI. Quem diz isso é a 8ª colocada na corrida olímpica, Gabriela Mazetto, 22 anos, que se mudou há pouco mais de um ano do litoral paulista para se recuperar de uma lesão na capital gaúcha. Mora com a família do empresário, Rafael Xavier da Costa, bem como Lucas Rabelo, 20 anos. Décimo nono na corrida olímpica, o garoto cearense veio morar em Porto Alegre com 14 anos de idade para treinar.
O principal motivo da idolatria pelo IAPI Skate Plaza é Luan Oliveira, porto-alegrense que andava ainda adolescente na pista da Zona Norte e despontou como um dos principais nomes do esporte no mundo _ também empresariado por Rafael. Em 2015, a melhor temporada da carreira, ele encerrou o ano no topo do ranking mundial da Street League.
Hoje, Gabí e Luquinhas já são as celebridades no IAPI. Gabriela, que tem 85 mil seguidores no Instagram, foi abordada por um skatista de 14 anos para tirar foto durante a entrevista. Lucas (196 mil seguidores na mesma rede social) é patrocinado por gigantes como Red Bull e Nike.
Ele treina na pista particular do Luan, mas também está sempre pelo IAPI. O espaço amplo para fazer manobras e continuar "seguindo o flow" é o que a dupla mais gosta no local. Nos próximos meses, porém, vão ter menos tempo para a pista da Zona Norte: em busca de vaga nas Olimpíadas, vão viajar para Austrália, Peru, China, Japão, Estados Unidos e Inglaterra até maio.
Na tarde de quarta, a pista do IAPI reunia adolescentes e jovens dos mais diversos bairros (de Boa Vista e Auxiliadora a Rubem Berta) e até de outras cidades da Região Metropolitana, como Alvorada. Cezar Simonetto Dal Pozzolo “Gordo”, 37 anos, skatista profissional e sócio da Matriz Skate Shop, vê a construção da pista street do IAPI como um divisor de águas. Inaugurada em 2001, fez a cena do esporte na Capital ganhar força em nível nacional, destaca. Gordo ajudou na criação e na manutenção da pista. Cita uma peculiaridade dela: foi replicado ali, com basalto polido, o chão da Praça da Matriz, point que espontaneamente junta skatistas desde a década de 1980.
— (O IAPI) é uma pista com referência de obstáculos da rua, foi uma inovação da época e é considerada bem original até hoje — comenta
Gordo, que ajudou a colocar até 15 mil pessoas em campeonatos no IAPI, incluindo skatistas dos Estados Unidos, do Chile, Argentina e países europeus, acredita que a pista nova da orla vai fazer sucesso:
— Vai ajudar a evoluir o esporte, possivelmente será um novo marco, como foi o IAPI. Com certeza, vou andar lá o máximo que eu conseguir.