No coração da Cidade Baixa, entre as ruas Joaquim Nabuco e Lopo Gonçalves, existe uma via estreita ocupada por 17 casas que avivam o local com diferentes cores para cada fachada. A Travessa dos Venezianos, tombada como patrimônio histórico e cultural municipal em 1980, leva o visitante ao passado de Porto Alegre, resgatando a memória do início do século 20. Mas há, ali, muito mais do que paredes coloridas.
Das 17 construções, hoje, só cinco servem como moradia. Quatro pertencem a restaurantes, e as demais se dividem entre três depósitos, um bar, um café, uma associação de artistas plásticos, um ateliê e um escritório de advocacia. Juntos, todos experimentam as singularidades de viver em uma referência turística da Capital, que se fortaleceu como ponto de encontro na cidade nos últimos anos.
Ex-moradora do local, Darquilene Magalhães, 34 anos, agora frequenta a rua por outro motivo. Ela vivia ali com o companheiro, mas, ao nascer o filho do casal, decidiram se mudar para um lugar mais espaçoso. O vínculo, porém, não foi perdido, e ela transformou a antiga residência no Café da Travessa.
– Aqui tem ares de cidade de pequena. A pessoa chega e parece que saiu da Cidade Baixa, que saiu de Porto Alegre, que está em outro lugar.
Apesar de a casa ter se tornado comércio, a relação com os vizinhos continua como antes, de família.
– Atendo o pessoal da pizzaria antes abrir, eles estavam aqui tomando café comigo. Saiu um guri, antes, que é filho da menina que trabalha no escritório de advocacia, eles vêm almoçar quando faço comida. A minha vizinha é nossa amiga, praticamente zeladora – conta Darquilene.
O clima pôde ser confirmado durante outra conversa com a barista.
– Darqui, vou levar a sua xícara e depois devolvo! – falou um dos vizinhos, do Bistrô em frente, que, como de costume, tomava um café ali antes de ir trabalhar.
Esse espírito de cumplicidade, como em uma cidade do Interior, até pode parecer novidade para os mais novos, mas já é uma tradição no local. Quem confirma é Carolina da Silveira. Aos 79 anos, ela conta que vive na Travessa há cerca de seis décadas, e até se emociona ao falar de tempos mais remotos.
– Era tudo de bom. Aqui na frente, a gente colocava uma mantinha para as crianças brincarem, de dia e de noite. A gente colocava as cadeiras e tomava chimarrão.
Só lembranças boas – diz, com olhos marejados.
Dividindo a casa com o esposo e o cachorro, a moradora destaca que a segurança era um dos pontos fortes da rua:
– Era tranquilidade. A gente amanhecia na rua porque não tinha assalto naquele tempo.
A Elsa (antiga moradora do local) dormia de porta aberta, de janela aberta.
Carolina é vizinha de porta do advogado Geraldo Fulgêncio, 57 anos, que chegou à Travessa dos Venezianos em 2007. Na época, ele procurava lugar para abrir um escritório. Pesquisou em diferentes ruas, mas foi na das casas coloridas que encontrou o que queria.
– Além de ser bom trabalhar em um lugar agradável e cultural, quando vi, me apaixonei. Também faz parte da minha contribuição para a cidade de Porto Alegre ajudar a cuidar de um patrimônio tombado – relata.
Um dos mais recentes moradores da Travessa é o agente penitenciário Rafael Guimarães, 27 anos, que mora ali há cerca de um ano. Apesar do pouco tempo, a relação com a rua é antiga, pois a casa em que vive hoje foi comprada pelos avós há 70 anos, época em que nem energia elétrica havia ali.
– Eles decidiram comprar aqui, porque, diz a minha tia, foi onde as minorias começaram a morar: negros, judeus... Naquela época, acho que 1930 ou 1940 – conta Guimarães.
Já a ex-zeladora e hoje aposentada Lourdes da Silva, 70 anos, foi parar ali depois de ganhar a casa de presente da antiga patroa.
– Ganhei porque trabalhei muitos anos para ela.
É uma pessoa que tem dinheiro, só que é simples, meio hippie. Ficamos amigas.
A mistura de empreendedores e moradores, novos e mais antigos, motivou Felipe Martini a criar a página no Facebook “Acontece na Travessa”. Ele elogia o uso misto da via:
– Acho legal que tenha comércio, bar, café, pizzaria, casa noturna, mas que tenha também uma senhora de 70 anos, o centro de religião afro, o cara que mora aqui há seis décadas, na casa que era do avô dele – argumenta.
Seja entre os que lá estão para as festividades ou para se recolher ao fim do dia, há um sentimento comum: a certeza de que, ali, ainda é possível ter o privilégio de experimentar a sensação de estar em uma Porto Alegre de outros tempos.
Detalhe GaúchaZH
Em razão de toda a história que a Travessa dos Venezianos carrega, a prefeitura a tombou em 1980. A partir da formalização, a rua passou a ser protegida por lei. É proibido destruir ou descaracterizar a via. O tombamento institui singularidades ao local. Qualquer reforma interna deve ser aprovada pela Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural da prefeitura,
e não é possível fazer reformas externas que mudem o visual das casas. O morador pode vender ou alugar a propriedade tombada e, a partir de um pedido, pode isentar-se do IPTU.
Quem fez
Conteúdo produzido pelos vencedores de 2019 do Primeira Pauta, programa que seleciona alunos de Jornalismo para imersão e treinamento em práticas jornalísticas na Redação de GaúchaZH. São eles:
- Camila Pellin, da Universidade de Passo Fundo (UPF)
- Darlan Fagundes Witchaki, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa)
- Erika Dal Carobo Viana, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa)
- Henrique Tedesco Abrahão, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)
- Isabel Linck Gomes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)