De acordo com o dicionário, a geladeira é um eletrodoméstico cujo interior possui temperatura adequada para conservar alimentos, impedindo-os de estragarem. Porém, na comunidade do bairro Bom Jesus, na zona leste da Capital, as frutas e verduras, entre outros, deram lugar aos livros, transformando as prateleiras do equipamento em uma verdadeira biblioteca. Assim nasceu a “Geladeiroteca Bom Jesus 470”, instalada na Rua Seis da Vila Fátima Pinto, bem em frente ao fim da linha do ônibus que atende a região.
A ideia partiu do ator e ativista cultural Alex José dos Santos, 55 anos, dos quais mais de 40 foram vividos na Bonja. Sem saber que destino dar aos livros ociosos do filho, o estudante Arthur Lucas dos Santos, 15 anos, Alex bateu no portão da amiga e poeta Fátima Regina Farias, 60 anos, e lançou a proposta de, juntos, construírem uma geladeiroteca para o bairro. De cara, Fátima se encantou pela ideia e os dois deram início ao projeto.
Por meio das redes sociais, a dupla obteve a doação do aparelho e recrutou um artista local para grafitar a nova biblioteca. Os primeiros livros vieram de Arthur e, depois, o acervo foi crescendo por meio de doações. Agora, com pouco mais de seis meses de existência, a geladeiroteca é sucesso entre a vizinhança da Bonja e está prestes a ganhar uma “irmã”.
Funcionamento
Para retirar um livro, basta que haja interesse do leitor. Diferentemente de uma biblioteca convencional, não há um prazo para devolução. Ainda assim, a ideia é que, em algum momento, a obra retorne para a geladeira, a fim de que mais pessoas possam lê-la.
Títulos que abordam a história e a cultura da população negra recebem tratamento especial. Eles são entregues em mãos ao leitor interessado e, ao fim da leitura, recolhidos novamente, numa espécie de telentrega literária. Segundo os organizadores, o objetivo é garantir que esse conteúdo, considerado de extrema importância, siga circulando entre a comunidade da Bonja.
— Temos um número muito grande de negros na Bom Jesus, mas que não conhecem sua história e cultura. As histórias a que temos acesso começam sempre com o negro escravizado, mas somos descendentes de grandes reis, nossa história é maravilhosa — comenta Alex, e Fátima complementa:
— Não estamos mais aceitando ficar invisíveis na sociedade. Já temos ferramentas suficientes para lutar pelo nosso espaço, com livros, palavras e história, sem uma gota de sangue. Por isso, essas obras são tão importantes.
Desafio para formar novos leitores
Além da retirada de livros, a geladeiroteca também abrange outras ações. Nas manhãs de sextas-feiras, os organizadores distribuem exemplares nos bancos dos coletivos que fazem a linha 470-Bom Jesus, desafiando quem utiliza o transporte a também se apaixonar pela leitura.
— Tendo acesso ali, no ônibus, é muito mais fácil que as pessoas se interessem. Tenho descoberto leitores que nem imaginava, pois estavam recolhidos, esperando uma chance para ler um livro. Por exemplo: dei algumas histórias em quadrinhos para crianças que moram aqui no meu beco e, agora, não tem um dia que não batam no meu portão para pedir mais — conta Alex, que reside no local conhecido na região como Beco da Morte.
Completando as atividades do projeto, Alex e Fátima realizam, toda terça à tarde, uma sessão de contação de histórias na Praça dos Anjos, ponto de encontro da vizinhança. E, nas noites de quinta, a dupla ministra uma oficina de teatro e criação cênico-literária na EMEF José Mariano Becker, também na comunidade.
Segunda geladeira será inaugurada neste domingo
A segunda geladeiroteca da Bonja (ao lado) será inaugurada no próximo domingo, às 14h, na Praça dos Anjos (Rua P, s/n). O local onde a nova biblioteca será instalada ainda é surpresa e deve ser divulgado durante o evento. Na decoração, o eletrodoméstico foi envelopado com ilustrações, fotos e desenhos feitos por moradores da região.
O lançamento contará com a apresentação de artistas vindos de diferentes áreas da periferia da Capital e da própria Bom Jesus, como o grupo Terminal 470 e o poeta Rafael Delgado. A tarde terá, ainda, a 15ª edição do Slam da Bonja – batalha de poesias escritas e declamadas por moradores.
Diante do sucesso do projeto, Alex afirma que essa é, na verdade, apenas uma forma de devolver para a vila tudo o que já recebeu:
— Se conseguimos contribuir para que uma pessoa, durante o dia, fique pelo menos 15 minutos fora do celular e pegue um livro para ler, sinto que estamos caminhando para a construção de um mundo mais humano. E, tendo um moleque de 15 anos em casa, não posso almejar um mundo melhor para ele sem criar esses exemplos.
Como doar livros
/// São aceitas doações de obras em bom estado, de literatura infantojuvenil ou adulta. Atenção: não são aceitos livros didáticos ou de temática religiosa.
/// Se você quiser contribuir com a iniciativa, entre em contato pelo Facebook do projeto em bit.ly/geladeiroteca470 ou pelo WhatsApp (51) 99395-0327.
Produção: Camila Bengo