Na Ilha Grande dos Marinheiros, na região do Arquipélago, em Porto Alegre, não é a proximidade das águas que amedronta os moradores, mas sim, a proximidade do concreto. Quando o questionamento é sobre deixar a área para o prosseguimento das obras da nova ponte do Guaíba, os relatos mais ouvidos são de nostalgia e de temor pelo futuro.
Atualmente, 83 famílias ainda aguardam para serem transferidas e indenizadas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) — no total, foram 488 famílias afetadas na ilha.
A retirada dos casebres de alvenaria e madeira, misturada aos resíduos que são selecionados por recicladores, deixa no local um cenário de abandono.
Os restos dos prédios demolidos vão sendo sobrepostos por enormes colunas de concreto cravadas no solo pelo constante som de uma máquina bate-estaca.
Mudança
Na Rua Nossa Senhora Aparecida, a principal da Ilha dos Marinheiros, grande parte dos reassentamentos já foi realizada. Na área onde as vigas são cravadas para que a ponte cruze caminho, o número de estruturas que resta não enche duas mãos. E num destes espaços está o salão de Isabel Oliveira, 44 anos, a Bel. Há duas décadas, ela corta cabelos entre as quatro paredes do comércio de fachada vermelha que estampa frases religiosas e o preço dos serviços oferecidos.
Bel não mora na ilha. Vem de Canoas diariamente para tocar o negócio. Engana-se quem pensa que o barulho das máquinas ou a cena estranha de um salão de beleza solitário no meio de um canteiro de obras assusta a clientela. Pelo contrário, ela orgulha-se em dizer que até aqueles que já deixaram o arquipélago vêm das cidades onde estão morando para serem atendidos ali. Para receber a indenização do Dnit, a cabeleireira precisa por a estrutura abaixo. A nova sede já está pronta, cerca de 200 metros ao norte, na mesma rua — algumas famílias optaram por adquirir novos imóveis na ilha, mas longe das obras da ponte.
— Ainda não fui para lá porque a água subiu um pouco, mas com as cheias a gente já é acostumado. Aqui (no salão atual), encheu uma vez só, mesmo estando tão próximo da margem _ recorda ela, citando que a enchente de 2016 foi a que mais perto chegou de seu comércio.
Na linha divisória
Mais adiante na mesma rua, Eliane de Fátima Faleiro, 48 anos, lamenta não ter sido considerada como integrante da área afetada pelas obras. Entre ela e a linha imaginária que indeniza e auxilia na compra de novas casas aos moradores — traçada pelo Dnit — são poucos metros. A retirada da população local derrubou o movimento do mercadinho administrado por ela há 30 anos.
Dos quase 400 pães franceses que eram vendidos ao dia, hoje, são assadas pouco mais de 70 unidades — e algumas sempre sobram, pontua Eliane. Com a subida do rio, a água entrou pelos fundos do comércio. As paredes apresentam vastas rachaduras, causadas pelo constante movimento do bate-estaca, garante o pedreiro Celoir Paulo Rodrigues, 58 anos, que auxilia Eliane no comércio.
— Tiraram a clientela dela e o prédio está se destruindo com as obras. O Dnit diz que vai mandar um perito, mas nunca aparece. Ao menos uma indenização ela deveria receber — pontua Celoir.
Eliane diz que entrou na Justiça para negociar com o órgão federal. Entretanto, não sabe se um dia receberá alguma compensação.
"Cada um tinha seu pedacinho"
No meio das obras, numa pequena casa feita com madeiras de compensado, a recicladora Roselaine Aires da Conceição, 45 anos, vive com o marido e cinco filhos. A alguns metros da casa, ela mantém um pequeno galpão de reciclagem. Na área onde mora, sua casa é a única ainda de pé. Antes, viviam ali outros dois irmãos, primos e sua mãe. Todos já foram indenizados ou fizeram a compra assistida, menos Roselaine.
— Eu gosto muito de ficar na ilha, é calmo, meus filhos têm escola boa. Minha família toda vivia aqui, trabalhando com a reciclagem, cada um tinha seu pedacinho de terra, agora é tudo do Dnit — brinca ela, esboçando um sorriso enquanto separa os resíduos.
Roselaine conta que não teve direito à compra assistida, pois a casa onde mora não estava em seu nome, e sim de outro parente. A indenização que deve receber é pelo trabalho com reciclagem, já que terá de deixar seu galpão de trabalho. Mesmo assim, ela ainda não tem certeza do futuro, pois aguarda que peritos do Dnit lhe pontuem alguma definição sobre o valor a ser recebido.
Remoções afetam três áreas
As remoções para execução das obras da nova ponte do Guaíba afetam três áreas da Capital. No caso da Ilha Grande dos Marinheiros, serão 488 famílias reassentadas. E no continente, as vilas Tio Zeca e Areia serão mudadas de lugar, com a transferência de 683 famílias — mas isso ocorrerá apenas após a conclusão das mudanças na ilha.
Conforme o Dnit, atualmente, 404 famílias já foram levadas para suas moradias definitivas. Quem, além da residência possuía comércio, ou então apenas tinha o comércio na ilha, recebe também um valor indenizatório. As outras 83 famílias ainda cadastradas como moradoras da ilha já firmaram acordos judiciais e estão em trâmites para buscar novas moradias definitivas, explica o órgão federal. Somente uma das 488 famílias consideradas parte da área afetada pela obra não aceitou a compra assistida. O caso aguarda decisão judicial.
A compra assistida consiste numa modalidade de reassentamento por meio da qual cada família que adere tem direito à aquisição de um imóvel residencial em qualquer localidade do Estado. A compra se dá com assistência do Dnit e equipes contratadas. O valor para a aquisição do imóvel e as despesas acessórias como o Registro de Imóveis, por exemplo, são integralmente depositados numa conta judicial que só poder ser movimentada com ordem de judicial.