Doraisy Pérez Laurencio, 33 anos, enxerga do pátio de casa o posto de saúde onde atuava pelo programa Mais Médicos em Guaíba, na Região Metropolitana. Ela relata que alguns pacientes às vezes atravessam a rua até o pequeno imóvel alugado por ela na Avenida Adão Foques para perguntar por que não está indo trabalhar.
— Eu não posso, fazer o quê? — diz, sem ânimo, a cubana.
A médica perdeu o emprego quando o governo cubano chamou de volta os profissionais do país, atribuindo a decisão a questionamentos feitos pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), à qualificação dos trabalhadores e ao seu projeto de modificar o acordo com a ilha. Mas Doraisy não voltou a Cuba. E não foi a única: ela participa de grupos em redes sociais com mais de 200 pessoas no país e outro com 28 apenas no Rio Grande do Sul que, segundo ela, também fizeram essa escolha.
Doraisy está morando com a também médica cubana Bárbara Reynaldo Fernandez, 52 anos, que se juntou à amiga ao ver os conterrâneos deixarem Ouricuri (PE), onde também trabalhava pelo Mais Médicos. Consideradas desertoras em sua terra natal, proibidas de retornar durante oito anos, segundo elas, as duas tentam buscar formas de se manterem no país que as acolheu há dois anos, mesmo não tendo carteira de trabalho ou visto adequado.
Durante a conversa com GaúchaZH, buscavam colocar seus dados na página do governo para se cadastrar novamente no Mais Médicos — volta e meia, mostravam os recados que apareciam na tela do celular, como "página indisponível" e "não foi possível acessar o site". Com a esperança de que, com a desistência de médicos brasileiros, voltará a ter espaço no programa, Doraisy virou a madrugada de quarta-feira (12) tentando fazer sua inscrição. Assim como Bárbara, conseguiu depois de dois dias de tentativas, mas ainda não há garantia nenhuma de vaga.
A busca por fazer a carteira de trabalho também está demandando paciência. Depois de ir ao Sine da cidade, Doraisy foi mandada para a unidade do Tudo Fácil em Porto Alegre, onde a informaram de que precisa ir até a Polícia Federal. É que os vistos expedidos para a atuação no Mais Médicos eram de estudo — elas realizaram uma especialização em Saúde da Família na UFRGS. Conseguiu marcar horário para 7 de janeiro.
As duas compartilham do mesmo motivo para querer permanecer no país: ajudar a família que ficou em Cuba. Doraisy manda o que pode de dinheiro para a mãe. Bárbara também ajuda os parentes, em especial, uma irmã que tem uma doença nos ossos e precisa de muita medicação. O salário que um médico ganha no Brasil é muito maior do que em Cuba.
Doraisy relata que quer fazer o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeira (Revalida) e pretende continuar atuando pelo SUS.
— A gente pode ajudar mais as pessoas que não tem possibilidade de pagar uma consulta — afirma, acrescentando que gostou do acolhimento dos moradores em Guaíba, mas aceitaria ir para qualquer Estado para voltar a trabalhar.
Sem receber salário ou a ajuda de custos das prefeituras desde o mês passado, elas conseguem se manter com o dinheiro que juntaram e contam com a colaboração de pessoas da cidade. O administrador Fabrício Carvalho, o advogado Alex Trindade e o médico e vereador João Collares fazem parte de uma rede de apoio, que já ajudou tanto com alimento ou objetos quanto com orientações para as médicas conseguirem a documentação que lhes garanta a permanência no país. O carinho dos moradores por elas é um facilitador: no supermercado, ao saber que as compras que Fabrício fazia eram para as médicas, o dono fez questão de mandar alguns produtos a mais.
O morador Elvis Garske Vieira Alves, 35 anos, conta que foi muito bem atendido pela médica, enquanto ela atuou pelo programa:
— Ela era bem atenciosa. Foi excelente.
Doraisy é a única de seis médicos cubanos que atuavam em Guaíba que decidiu permanecer. O secretário da Saúde de Guaíba, Jocir Panazzolo, relata que as vagas que eram dos cubanos já estão preenchidas, mas a prefeitura aguarda parte dos contemplados se apresentar.