Ao contrário do que muitos podem pensar, quando o assunto é sétima arte, nem mesmo a visão é tão indispensável como sensibilidade e boa vontade. E se há uma turma que sabe disso são os alunos da Associação de Cegos do Rio Grande do Sul (Acergs) que participaram, recentemente, de uma oficina de cinema na qual produziram um curta-metragem que será exibido em setembro, em uma mostra na Capital – o mesmo curso foi oferecido em Canoas.
Cegos ou com baixa visão, os 12 integrantes da Oficina de Realização Audiovisual – Sonhos Acessíveis participaram de todas as etapas da construção de um filme: do roteiro às filmagens, até a edição. Tudo sem nenhum tipo de equipamento adaptado. Com uma percepção aguçada e motivados por um grande desafio, os alunos da Capital construíram uma pequena história sobre o dia a dia deles na Acergs.
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Em sala de aula, montaram o passo a passo. Acompanhados por monitores, foram para a rua, em pleno Centro Histórico de Porto Alegre, captar imagens exatamente como as imaginavam em seus pensamentos. De volta às quatro paredes, ouviram da professora a audiodescrição das cenas e editaram o material.
Injeções de ânimo
Em quatro dias, a criatividade e o entusiasmo falaram mais alto do que qualquer limitação e foram injeções de ânimo, esperança e autoestima para quem se acha cada vez mais capaz de transpor qualquer obstáculo.
– Nunca me imaginei gritando "ação!" atrás de uma câmera. É um aprendizado incrível que nos prova que nada pode nos parar – conta a professora de dança voluntária Janete da Silva Vernes, 50 anos, que nasceu com miopia progressiva e, aos 28, teve um descolamento de retina. Hoje, tem apenas 15% da visão do olho direito, mas não lamenta:
– Não paro para pensar nisso, apenas vivo. Levei 16 anos para descobrir o mundo dos cegos e, agora, sou muito mais feliz porque sei que não tem nada impossível pra mim.
Oportunidade
O representante comercial aposentado Luiz Gonçalves da Silva, 57 anos, do bairro Rubem Berta, perdeu completamente a visão há 12 anos, depois de um derrame. Na Acergs, já fazia aulas de braile e informática, mas nada tão inusitado como cinema, o que, segundo ele, ampliou os horizontes da turma.
– Tivemos acesso a uma cultura diferente, a pessoas com um conhecimento muito elevado, como as professoras, que compartilharam com a gente muita coisa bacana. Foi muito divertido – comemora Luiz, que faz questão de ressaltar:
– Sou totalmente independente. Faço tudo dentro de casa e na rua. E se tiver novas oportunidades como essa, vou abraçar também. Perdi a visão, mas não perdi a vida.
"Tudo pode ser adaptado"
Bruna Schatschineider, 29 anos, do bairro Cavalhada, perdeu a visão com oito anos, quando teve um tumor no cerebelo que rompeu o nervo óptico. Isso não impediu que ela se formasse em Pedagogia e concluísse duas especializações: em Deficiência Visual e Educação Especial Inclusiva. Hoje, é professora de braile e transcritora de materiais acessíveis na Acergs.
A cada aula, dá uma lição de vida aos seus alunos. A participação na oficina de cinema trouxe ainda mais inspiração para a profe, que ressalta:
– Nunca tinha feito nada parecido com isso. Achei uma proposta maravilhosa. Tudo pode ser adaptado, de um jeito ou de outro. Tudo é possível. Esse desafio da oficina abriu muitas portas para a autoestima das pessoas. Eu não sou coitada. Tenho saúde, tenho vida, graças a Deus, não tenho uma doença mais grave. Só tive um tumor, mas ele foi retirado. Só restou a cegueira, e ela não é impeditivo pra nada.
Para ouvir, sentir, tocar e imaginar
A oficina faz parte da programação da mostra Sonhos Acessíveis – Cinema, Audiodescrição e Impressão 3D, idealizada pelas produtoras culturais Luciana Druzina e Saskia Sá e contemplada pelo Edital Pró-Cultura/RS FAC Regional, financiado pelo Fundo de Apoio à Cultura, da Secretaria de Estado da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer do Rio Grande do Sul.
O resultado do trabalho dos alunos poderá ser conferido na mostra, que acontecerá simultaneamente em Porto Alegre e em Canoas, em setembro. Com entrada franca, os filmes exibidos contarão com o recurso da audiodescrição, ou seja, a narração de todas as ações silenciosas do filme, como uma lágrima caída e os gestos ou emoções dos personagens.
Outro atrativo será a impressão 3D, para que o público cego ou com baixa visão tenha a experiência tátil de tocar e sentir como são os personagens principais das obras exibidas.
Coordenadora da mostra, Luciana, 38 anos, destaca o sucesso da oficina e o comprometimento dos alunos.
– Nos propusemos a fazer uma experiência inovadora e não sabíamos como seria o resultado, mas foi espetacular. A rapidez de aprendizado deles é muito maior do que de muitas pessoas videntes. A empolgação e a dedicação é incrível.
Arte democrática
Coube à capixaba Saskia, 52 anos, roteirista e diretora de cinema, a tarefa de ministrar as aulas. Ela veio ao Estado especialmente para o projeto e ressalta que a arte cinematográfica é democrática.
– Tem muitas atividades inseridas dentro da produção de cinema, desde criação de roteiro até trilha sonora e a própria edição. Então, qualquer pessoa, sendo vidente ou não, pode participar dessas etapas – garante a professora, que completa:
– Quando você cria qualquer tipo de arte, você cria primeiro na sua cabeça. Constrói-se uma paisagem mental. Ser cego ou ter baixa visão não te impede de criar uma história, uma obra de arte ou qualquer coisa, porque essa criação existe dentro da sua mente.
A expectativa é de que novas edições da oficina ocorram não só em Porto Alegre e Canoas mas em todo o Estado. Enquanto não acontecem, em breve, estarão disponíveis na internet apostilas em braile e uma versão do curso em MP3.
Programe-se!
/// O que: mostra Sonhos Acessíveis – Cinema, Audiodescrição e Impressão 3D/// Quando: de 11 a 16 de setembro
/// Onde: Porto Alegre (Santander Cultural, Hospital Psiquiátrico São Pedro e Fundação de Proteção Especial do Rio Grande do Sul) e Canoas (no Sesc do município)
/// Quanto: entrada franca. Aberto a todos os públicos