Uma disputa judicial pode deixar sem teto um movimento que, nos últimos seis meses, deu amparo a dezenas de mulheres que foram alvo de violência doméstica. Reconhecida por órgãos como o Ministério Público e a Polícia Civil – que costuma direcionar vítimas para atendimento pela organização – a Ocupação Mulheres Mirabal pode ter de devolver o prédio onde funciona sem que haja definição de outro local para se estabelecer.
O imóvel, na Rua Duque de Caxias, pertence à Inspetoria Salesiana São Pio X. Estava fechado havia pouco mais de três anos para reformas quando o Movimento de Mulheres Olga Benario instalou, ali, serviços de abrigo e apoio para mulheres que sofreram espancamentos, abusos sexuais, tortura psicológica e outros tipos de violência doméstica.
Leia mais
Saiba como é feito o trabalho de apoio na Ocupação Mirabal
Paulo Germano: mulheres podem ficar sem teto
– Oferecemos uma rede de apoio, com advogada, assistente social, psicóloga, enfermeira, todas voluntárias. As mulheres só deixam a casa quando se sentem seguras para seguirem adiante – conta Cláudia Morais, 44 anos, uma das coordenadoras.
Quatro dias depois da ocupação, a Inspetoria Salesiana pediu a reintegração de posse. Após recurso, a Justiça determinou uma reunião de mediação para buscar uma alternativa. Mas, em março, a 20ª Câmara Cível deu prazo de 30 dias para que o imóvel fosse desocupado. Ainda não houve a expedição de mandado.
O Ministério Público interveio pedindo que o processo seja anulado. Segundo a procuradora Noara Lisboa, a questão é de relevância social. Além de mulheres, a casa abriga crianças – os filhos também precisam ficar longe do agressor.
– Pode ser feita uma conciliação. A negociação é o melhor caminho para que as mulheres não fiquem carentes de políticas públicas – opina.
Conforme uma das advogadas da Mirabal, Elisa Torelly, o imóvel não pode ser desocupado sem reassentamento. Para ela, a Inspetoria Salesiana estaria tratando do assunto como "um caso policial".
– As mulheres não podem ficar na rua ou voltar para os lares onde foram agredidas. Eles (salesianos) são intransigentes, não querem conversar. Dizem que só vai ter conversa depois que saírem – afirma.
Guilherme Augusto Pinto da Silva, advogado dos salesianos, diz que a instituição tentou conversar com o movimento para que fosse feita uma desocupação voluntária, mas não teve êxito. Segundo ele, o diálogo teria se tornado inviável por divergência de ideias.
– O movimento tem uma ideologia completamente diferente da dos salesianos. É uma inspetoria formada por padres. Como vão abrigar mulheres que defendem o aborto? – diz.
Mantida com a ajuda de doações, da venda de pães e roupas do brechó instalado no prédio, a organização não recebe verbas públicas. Com a incerteza sobre a permanência, Cláudia defende a importância do trabalho realizado.
– Sabemos que o prédio pertence aos salesianos, mas queremos que o Estado nos ajude oferecendo um espaço semelhante para que a gente possa continuar o nosso trabalho. A rede que acolhe mulheres está precária. O que nós fazemos faz a diferença – salienta.
Com apoio público insuficiente, ONG é opção para a polícia
A delegada Tatiana Bastos, da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher de Porto Alegre, costuma enviar para a Ocupação Mirabal casos que entram em lacunas da rede de proteção da Capital, quando há a impossibilidade de atender mulheres de outros municípios ou não há vagas nos abrigos públicos. Se coordenadoras levam vítimas para registrar ocorrências na delegacia, recebem a mesma prioridade de encaminhamentos feitos pela assistência social oficial do município ou do Estado.Para ela, a decisão de encaminhar mulheres para um espaço não reconhecido legalmente pelo Estado é uma "escolha de Sofia":
– Mesmo com a questão legal, eu sempre vou priorizar a defesa da mulher, porque nesses casos ela precisa de acolhimento e o trabalho que a ocupação faz é maravilhoso. Quando a rede não suporta a demanda ou há mulheres de outros municípios, nós encaminhamos, sim, para a Mirabal.
No fim do ano passado, a ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos emitiu uma nota de apoio à Ocupação de Mulheres Mirabal. A organização salienta que "a luta das mulheres por sobrevivência deve ser encarada com seriedade pelos poderes públicos e pela sociedade."