Um oásis de oportunidades e afeto nasce no coração de um dos bairros mais violentos de Porto Alegre. Projeto social que tem trazido esperança e novas perspectivas a jovens da Restinga através da arte do skate, o Jam Skatinga é o novo xodó da criançada.
No Centro Social Padre Pedro Leonardi, na Vila Chácara do Banco, 120 alunos – de um total de 500 abraçados pela instituição – participam, em turno inverso ao das aulas, de uma escolinha que ensina a prática do esporte. Os mais velhos ainda têm a oportunidade de desenvolver uma profissão integrando as oficinas de marcenaria e serigrafia, confeccionando e personalizando skates e camisetas cuja renda da venda será revertida para os trabalhos do Centro, que tem convênios firmados com a prefeitura da Capital.
O nome do projeto – que ganhou até uma oração própria e uma Nossa Senhora estilizada, protetora dos skatistas – tem a cara do bairro: simboliza uma reunião de skatistas da Tinga. A seguir, confira histórias de vidas que estão sendo transformadas pela iniciativa.
– O skate tem um simbolismo. Se equilibrar em cima dele é como se equilibrar na vida, levantar dos tombos, superar os obstáculos – justifica o idealizador do projeto, padre Claudionir Ceron, 48 anos.
Ele recorda que as primeiras aulas de skate, ainda informais, eram dadas no asfalto, na rua em frente ao Centro. Até que, com a renda arrecadada em um almoço beneficente, foi construída uma pista profissional das dependências do local. Assim, começou a escolinha.
A primeira turma era de 20 alunos, mas logo a novidade se espalhou e esse número dobrou rapidamente. O skate virou uma febre entre os piás, e, de olho nesse interesse, os educadores passaram a usá-lo como estímulo para o bom desempenho na escola.
– Conforme o comportamento da criança, íamos premiando com a oficina de skate. Ir bem nas aulas, não faltar, cumprir horários e se comportar são critérios para fazer parte da escolinha – explica a coordenadora administrativa Maria Teresa Telles, 49 anos.
Turmas cheias
Hoje, as turmas têm cerca de 25 crianças a partir de seis anos, com aulas às segundas, quartas e sextas-feiras. Às terças e quintas, 12 jovens entre 14 e 18 trabalham na fábrica de shapes (a prancha de madeira do skate). Quem comanda essa galera é o professor de skate e marcenaria Paulo Roberto Longarfino, 32 anos.
– O skate faz uma transformação na vida dos jovens, como fez na minha. Eu cresci dentro da comunidade e tive a infelicidade de ir para o lado errado, mas o esporte me trouxe de volta. E é isso que eu tento mostrar pra eles, que o skate é uma ferramenta que consegue salvar vidas – diz o mestre.
Outra etapa do projeto são as aulas de serigrafia, ministradas pelo educador Tharcus Aguilar, 39 anos. Nelas, os alunos desenvolvem sua capacidade criativa com desenhos e grafismos que são usados nos skates e nas camisetas.
– Aqui, começamos a parte da elaboração das artes finais, que vão ser impressas ali na fábrica. Eu passo a técnica, e os alunos criam. Assim, eles participam de todo o processo envolvendo a arte do skatismo e saem daqui jovens completos, prontos para encarar o mercado profissional – destaca Tharcus, seguido por Maria Teresa, que complementa:
– Estamos criando uma geração de novos empreendedores. Ensinamos a eles noções de geração de renda, espírito de cooperativismo e empreendedorismo.
Padre Ceron ainda criou uma oração, aprovada e autorizada pela Mitra da Arquidiocese de Porto Alegre, para os praticantes de skate. A imagem de uma Nossa Senhora personalizada virou a marca do projeto.
– Tem Nossa Senhora protetora dos motoristas, dos caminhoneiros, mas ainda não tinha dos skatistas. É uma Nossa Senhora que tem tudo a ver com a gurizada. É uma maneira de evangelizar sem ter que andar com a Bíblia embaixo do braço – argumenta o padre.
Confiança
A pequena Micaeli da Silva Brito, sete aninhos, por enquanto, só quer saber mesmo é de se divertir na pista. Paramentada com capacete e equipamento de proteção, a pequena é uma das mais entusiasmadas da turma de mini aprendizes de skatistas.
– Eu gosto de andar de skate. E nem tenho medo de cair, porque eu sei como se faz – diz, confiante, a menina, que é criada pela avó paterna, Laureci Pereira Brito, 53 anos, que a leva ao centro diariamente quando sai para trabalhar.
O pai dela morreu, e a mãe, que tem outras três filhas, deixou Micaeli sob os cuidados da avó.
– Ter um lugar assim para direcionar as crianças é uma bênção. Para a gente que tem compromisso de trabalhar, é importante, porque não quero que ela fique na rua nem sozinha em casa. E o tal skate é uma alegria para ela. Todo dia, arruma a mochila com o tênis do skate antes de sair e vai faceira – conta a vovó.
Trilhando o caminho do futuro
Aos 15 anos, William César Santana Leal já compreende a oportunidade que têm em suas mãos. Ele é um dos 12 alunos da fábrica e vê nela uma estrada que poderá levá-lo a um futuro promissor.
– É um negócio que pode ser a minha profissão. Hoje, sei fazer tudo, todas as etapas da construção do skate. Temos a base da marcenaria, que serve para tantas outras coisas também – avalia.
Filho de um taxista e de uma dona de casa, William frequenta o Centro todas as tardes, com assiduidade impecável, e garante:
– É melhor estar aqui do que na rua, onde poderia estar fazendo algo errado ou passando por alguma situação ruim. Estar aqui é uma forma de se proteger e de ajudar outras crianças.
O discurso do menino resume uma das principais premissas do projeto Skatinga: blindar os jovens contra a violência, dando a eles oportunidades de desenvolvimento profissional, social e emocional.
– As crianças chegam aqui carentes em todos os sentidos: familiar, cultural, de valores. Tentamos dar o melhor para que tenham uma formação digna, um local seguro para estar, para se divertir. O esporte é sempre uma luz e um caminho para as periferias – pondera Maria Teresa.
Outro aluno da fábrica, Guilherme Perez de Lima, 15 anos, frequenta o Centro desde os sete anos, e há dois começou a praticar skate. Hoje, dedica duas tardes na semana à construção de shapes.
– Eu adoro estar aqui. Faço amigos, aprendo uma profissão e ocupo meu tempo com algo bom – elenca Guilherme, que é filho de um eletricista e de uma cuidadora de idosos.
Ele tem outros nove irmãos. A maioria deles já passou pelo Centro. Um, inclusive, é marceneiro:
– Eu também quero seguir esse caminho. Minha vontade é fazer um curso profissionalizante de marcenaria para também fazer móveis e outras coisas.
Válvula de escape
Crianças em situação de vulnerabilidade, destituídas de suas famílias e sob medidas protetivas que vivem nas três casas-lar mantidas pelo Centro também participam do projeto. Para preservá-las, suas identidades não podem ser divulgadas. É o caso de um menino de 12 anos que já passou por duas tentativas de ser reintegrado à família, porém, sem sucesso.
Filho de mãe viciada em drogas, ele e os quatro irmãos ficavam sozinhos em casa, não iam à escola e, não raramente, passavam fome. Há dois anos no Centro, viu sua realidade mudar, o que fica evidente no sorriso solto que exibe.
– É um menino muito sensível, amoroso e grato. Ele pede para voltar pra cá, diz que quer os amigos, as brincadeiras e a comida – conta Maria Teresa.
Uma linda menina de 13 anos que perdeu a mãe para as drogas e por negligência e falta de recursos da família foi parar na casa-lar com os irmãos esbanja habilidade no skate. Este é o seu momento preferido do dia e uma válvula de escape para a rebeldia que, volta e meia, ostenta.
Às vezes, ela foge para a casa da avó, mas sempre acaba voltando para onde é sempre acolhida.
– Queremos plantar nelas uma semente de que podem ir para o lado bom, mantendo valores como disciplina e perseverança. Isso pode mudar suas histórias e transformar as estatísticas – acredita Maria Teresa.
Melhora no rendimento escolar
Nem quando chove a animação de um trio que anda sempre grudado diminui. Elias Silva Flores, 14 anos, a irmã Vitória Silva Braga, dez, e a prima Amanda Fayett, dez, são pura empolgação ao falar da oficina de skate.
– Todo mundo quer fazer. Tá sempre cheio. É muito legal! – resume Vitória.
Elias vibra ao falar sobre o Centro:
– Eu adoro tudo. É muito melhor do que ficar em casa. Antes, eu tinha medo do skate, não queria fazer, mas agora é uma das coisas que eu mais gosto.
Estudante da quinta série, Amanda lembra que até o seu desempenho escolar melhorou quando começou a frequentar o centro, há dois anos:
– Minhas notas estavam baixas e, depois que eu comecei a vir, melhoraram. Pena que quando chove não tem!
ORAÇÃO DA SANTA SKATINGA
"Ó mãe querida, tu cuidas sempre dos teus filhos!
Protege-me nas manobras da vida, dá-me força para levantar das quedas.
Ajuda-me a superar os obstáculos do dia a dia.
Cura as feridas e guia-me pelas estradas da vida.
Que eu possa cuidar do outro que comigo caminha e vive.
Que eu proceda com a certeza de que teus braços me amparam e sustentam.
Amém!"
Saiba mais sobre o Centro
/// O Centro Social Padre Pedro Leonardi funciona de segunda a sexta-feira, das 9h às 15h, na Rua Chácara do Banco, 71, no Bairro Restinga.
/// É aberto à toda a comunidade e presta atendimento gratuito também para crianças de outros bairros e cidades da região Metropolitana.
/// Para ingressar, a criança deve estar matriculada na escola e frequentando as aulas.
/// A coordenadoria pedagógica e assistência social avaliam a vulnerabilidade da família e cadastram a criança. Se aprovado o ingresso, os pais ou responsáveis assinam termo de responsabilidade.
/// Além do skate, o centro oferece diversas outras oficinas e reforços escolares.
/// Aos sábados, a pista de skate e as quadras de esporte são abertas à comunidade, das 14h às 18h.