A remuneração dos professores das escolas municipais de Porto Alegre tornou-se, na semana passada, um tema incandescente, graças à divulgação de um estudo sobre médias salariais realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). De acordo com o levantamento, com dados referentes a 2014, uma jornada semanal de 40 horas representa, na rede de ensino da Capital, uma média de proventos mensais de R$ 10.947,15. Porto Alegre seria, com larga margem de folga, a rede que paga melhor entre as capitais (a média é de R$ 3.116). Ofereceria também remuneração superior àquela das escolas federais, estaduais e privadas.
O ranking provocou reações imediatas. Enquanto o Sindicato dos Municipários (Simpa) afirmava que os números do Inep não condizem com a realidade – e, de fato, há detalhes nebulosos na estatística –, o prefeito Nelson Marchezan divulgava os resultados nas redes sociais, sublinhando que eles não se refletiam em aprendizado dos alunos.
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A manifestação do prefeito encontrou eco na posição de alguns especialistas em educação. Eles consideram louvável que a escola municipal de Porto Alegre ofereça boa remuneração, mas apontam para a má qualidade de ensino. Apesar dos salários acima da média e do elevado investimento por aluno, a rede da prefeitura tem sistematicamente apresentado resultados constrangedores nas avaliações. No Ideb de 2015 (confira o ranking das capitais no fim do texto), os alunos ficaram entre os piores do país, na comparação com os de outras capitais. Em cidades onde os professores ganham menos do que metade do que é pago em Porto Alegre, conforme o estudo do Inep, os alunos se saíram melhor nos exames.
– Porto Alegre tem a chance de nos ensinar alguma coisa. A cidade fez algo que outros lugares deveriam fazer, que é pagar melhor o professor. Mas o que a gente está aprendendo é que isso não resolve os problemas de aprendizado. O ponto que a sociedade de Porto Alegre tem que discutir é o seguinte: por que temos os resultados que temos? Ter alunos abaixo do básico em Porto Alegre é muito mais sério do que em outro lugares, porque a escola tem melhores condições – diz o professor mineiro Francisco Soares, ex-presidente do Inep.
A Secretaria Municipal de Educação (Smed) afirma que os números revelados pelo instituto estão em sintonia com seus próprios registros. De acordo com levantamentos deste ano, a média salarial da rede, considerando todos os profissionais com jornada de 20 ou 40 horas, é de R$ 7.112,40. Considerando só os que têm 40 horas, R$ 9.294,51.
– Há muitas maneiras de fazer o cálculo, e o resultado depende do que se leva em consideração, como 13º ou férias, mas o número do Inep é muito próximo do número que temos. Estamos falando do mesmo patamar – afirma o secretário municipal de Educação, Adriano Naves de Brito.
Há, contudo, algo no estudo do Inep que não fecha com o que se sabe. Conforme o instituto, os professores de Porto Alegre trabalham, em média, 20 horas por semana e têm remuneração bruta média de R$ 5,5 mil. É projetando quanto ganhariam para 40 horas que se chega a R$ 10,9 mil. Mas os professores da cidade trabalham mais de 20 horas em média. A maioria tem jornadas de 40 horas.
ZH questionou o Inep sobre a discrepância. O instituto respondeu, por e-mail, ter retirado os números da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), a partir de informes feitos pelo município. ZH questionou se, havendo os pesquisadores realizado os cálculos sobre uma carga horária errada, a remuneração final divulgada não poderia estar distorcida. O Inep respondeu apenas que "o cálculo da remuneração média bruta e a padronizada para 40h usam para o seu cálculo a carga-horária informada na Rais".
O Simpa contesta a remuneração apresentada e atribui os maus resultados da escola municipal nas avaliações educacionais ao fato de que os testes não levam em conta as características de cada comunidade e à circunstância de que a rede atende alunos de muito baixa renda.
– Trabalhei na Escola Timbaúva, na Zona Norte, e, quando cheguei lá, as crianças não sabiam usar garfo e faca, não conheciam nenhuma história infantil, porque não há tradição de leitura nessa comunidade. Então, a escola acaba tendo de ensinar outras coisas além do conteúdo. Essas crianças vão levar mais tempo para adquirir o que a escola se propõe a trabalhar – defende Ivam Martins de Martins, diretor de comunicação do sindicato.
Em meio à polêmica pós-divulgação dos dados do Inep, essa linha argumentativa foi adotada por professores do município para explicar o aprendizado precário das crianças. De fato, há uma quantidade considerável de estudos demonstrando que o fator mais decisivo para o desempenho escolar não é a escola ou o professor e, sim, o nível socioeconômico familiar. O sociólogo Simon Schwartzman, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), debruçou-se sobre os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e constatou que, em todas as redes de ensino, a nota média dos alunos crescia de acordo com o nível de escolaridade dos pais, um importante indicador socioeconômico. Mas Schwartzman entende que tal justificativa não é aceitável para Porto Alegre:
– Há escolas com alunos em má situação socioeconômica que obtêm bom resultado, porque a forma como a escola funciona também é importante. Se você compara redes públicas que atendem populações semelhantes e uma delas apresenta salários altos e desempenho baixo, então existe um problema aí. Todo mundo deveria receber um bom salário. Mas a lição que se tira disso é que não se resolve o problema da educação simplesmente aumentando o salário do professor. Tem de mexer nas questões de funcionamento, de gerenciamento da escola.
Recente relatório do Tribunal de Contas (TCE) do Estado mostra que, entre as redes municipais das capitais, Porto Alegre atende à quarta população com melhor condição socioeconômica.
– Se Porto Alegre tem boa condição socioeconômica, se foi a capital que investiu o maior valor por aluno, se tem professores bem remunerados, se tem uma estrutura boa, então qual é a causa do mau resultado? Era de esperar que figurasse entre as primeiras capitais em termos de resultados educacionais – ressalta o auditor do TCE Vinícius Lacerda.
Adriano Naves de Brito, o secretário municipal de educação, considera inaceitável atribuir o mau desempenho dos estudantes ao baixo nível social.
– Temos de parar de dizer que nossos números não são bons porque nossos alunos não são capazes de aprender – considera Brito, acrescentando: – Não estou dizendo que os professores deveriam receber mal. Mas precisamos ter uma contrapartida.
Sindicato contesta valores da pesquisa
Entidades que representam os professores contestam o estudo do Inep sobre remuneração. Ivam Martins de Martins, diretor de comunicação do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa), afirma que os números não batem com o que consta do Portal Transparência da prefeitura, onde os salários são discriminados. Ele diz que um levantamento do sindicato no portal indica, para 40 horas semanais, média salarial bruta de R$ 6.951 e líquida de R$ 5.275. Segundo Martins, entre os 4 mil professores da rede, haveria 70 com salário líquido acima de R$ 10 mil e 660 que recebem salário bruto acima de R$ 10 mil:
– Não é como o prefeito diz. São só aqueles que estão em fim de carreira, com as vantagens que se atinge ao longo do tempo. Não vamos nos rebaixar ao tipo de provocação e ataque ao serviço público que o prefeito tem feito. Ele sabe que esses dados não são realidade. Ele joga dados falsos, assim como está jogando desde o inicio da gestão a respeito de não ter dinheiro na prefeitura, e quer ganhar a opinião pública contra os trabalhadores. Essa é a batalha dele, tentar desqualificar os professores municipais.
O diretor do Simpa cita ainda o relatório sobre a rede municipal produzido pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), que calcula média salarial de R$ 2.474,84 para 20 horas semanais. A Smed respondeu que "a média salarial para 20 horas que consta do relatório considera apenas os vencimentos e a progressão funcional e não contabiliza as vantagens referentes a triênios, difícil acesso, gratificação por classe especial e adicional por tempo de serviço". Ainda segundo a secretaria, "os dados do TCE são de 2015 e apresentam uma estimativa, enquanto a Smed apresenta dados concretos do pagamento da folha salarial, o que pode ser verificado no Portal da Transparência".
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) mostra contrariedade com as "inconsistências metodológicas" do trabalho feito pelo Inep, que "estarrecem por estarem tão evidentes e claros, de modo que qualquer estagiário em pesquisa social deveria sugerir a interrupção de divulgação de uma pesquisa que aponta que um professor da rede estadual do Pará, por exemplo, afira remuneração de mais de R$ 10 mil. É estarrecedor, reforça-se, que uma pesquisa com uma informação desse tipo não tenha retornado ao setor de controle para a verificação desse dado". Em nota, a CNTE faz vários questionamentos sobre o método e conclui dizendo que "não aceitará que esses resultados distorcidos divulgados por essa pesquisa sejam referência para qualquer debate acerca da carreira docente e da formulação dos novos valores do Custo Aluno-Qualidade Inicial".
O Inep disse, em e-mail a ZH, "que a metodologia proposta no estudo é consistente, já que 93,3% dos docentes registrados no Censo Escolar foram localizados na Rais, dos quais 97,2% das informações atenderam aos requisitos metodológicos do estudo. Esse número é uma evidência de que os resultados declarados à Rais tem representatividade estatística, podendo ser utilizados para praticamente todos os municípios brasileiros".
Falta formação e falta avaliação, diz TCE
Pouco antes da divulgação do estudo do Inep, um relatório de mais de 400 páginas, elaborado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), já havia colocado as escolas municipais de Porto Alegre sob os holofotes, apresentando um duro diagnóstico sobre a rede, que amargaria maus resultados como consequência de "ineficiência e ineficácia da política educacional". O auditor público externo Vinícius Lacerda, um dos autores do relatório, diz que o levantamento do Inep apenas reforça o que as pesquisas acadêmicas já teriam constatado: a inexistência de uma correlação entre remuneração dos professores e desempenho educacional.
– Principalmente os aumentos lineares, dados a toda a categoria, não geram melhoria nos resultados educacionais – argumenta.
O relatório do TCE levanta hipóteses para explicar por que o desempenho das crianças é tão fraco, mesmo que Porto Alegre tenha sido a Capital que mais gastou por aluno entre 2008 e 2015. Uma delas seria o fato de o plano de carreira privilegiar professores com mestrado, que entram em uma classe diferenciada de educação, ainda que estudos citados pelo tribunal apontem que a titulação não proporcione avanços no aprendizado.
– O que os estudos demonstram é que o mestrado tem um nível teórico muito alto e, por isso, acaba não refletindo diretamente na aprendizagem. E a formação que poderia ter impacto, a formação continuada, que ocorre em serviço, não existe em Porto Alegre. A prefeitura de Sobral, no Ceará, que apresenta resultados educacionais excelentes, oferece ao professor um curso de formação inicial de 200 horas. Porto Alegre ofereceu aos ingressantes do último concurso uma formação de apenas quatro horas. Isso não é formação – diz o auditor.
O relatório do TCE também diz que os professores da Capital não passam por avaliações. Quando ingressam, eles têm um estágio probatório – mas apenas dois professores foram reprovadas nessa fase desde 1960. Quando atingem a estabilidade, os docentes deixam de ser avaliados.
– Isso é desastroso em termos de gestão de recursos humanos. Toda a literatura aponta para a necessidade de avaliação em serviço – analisa Lacerda.
O secretário municipal Adriano Naves de Brito diz que a prefeitura recebeu o relatório do tribunal "sem surpresa, mas com responsabilidade" – a atual administração tem dado bastante visibilidade ao trabalho do TCE. Brito concorda que o que falta na rede de escolas é gestão:
– Não se pode falar agora em melhorar as condições, mas em melhorar a gestão das condições.
Dados teriam sido censurados
Presidente do Inep entre 2014 e 2016, na presidência de Dilma Rousseff, o educador mineiro Francisco Soares revela que os dados sobre a remuneração dos professores já haviam sido levantados dois anos atrás, quando ele ainda liderava o instituto:
– Embora tenha autonomia formal, na prática o Inep depende muito das decisões que são feitas no âmbito do Ministério da Educação. O instituto não tem liberdade de fazer o seu trabalho. Não tivemos condições de divulgar isso. São dados que estavam processados há muito tempo. Por que só estão aparecendo hoje?
Soares acredita que a não divulgação esteja relacionada com a repercussão social que os dados poderiam ter, por colocarem em xeque uma ideia defendida pelos sindicatos:
– Toda a fala do sindicato está baseada nisto: "Pague mais se você quer melhor qualidade de educação". Porto Alegre não pode falar isso. Esses dados colocam questões que antes não podiam ser colocadas. Por isso é que passaram dois anos até serem publicados. Porque dizem: "Mesmo se gastássemos o que se diz que deveríamos gastar, um número enorme de crianças vai continuar sem ter o direito de aprender garantido". Temos essa ideia do professor herói. A grande reflexão que precisa ser feita é que não é só o salário que vai resolver.
ZH tentou falar com o ministro da Educação no período, Renato Janine Ribeiro, mas não conseguiu contato. A reportagem também perguntou ao Inep o motivo de o levantamento ter sido divulgado apenas agora, se os dados já estavam disponíveis desde 2015. O instituto respondeu que o "trabalho está sendo desenvolvido pelo Inep há dois anos, mas sua conclusão só se deu recentemente".
NOTAS NO IDEB 2015 (Capitais)
Séries iniciais
Curitiba – 6,30
Palmas – 6,20
Florianópolis – 6,10
Teresina – 6,10
Belo Horizonte – 6,10
São Paulo – 5,80
Rio Branco – 5,80
Goiânia – 5,60
Rio de Janeiro – 5,60
Vitoria – 5,60
Cuiabá – 5,50
Boa Vista – 5,50
Fortaleza – 5,40
Manaus – 5,40
Campo Grande – 5,40
Porto Velho – 4,80
Salvador – 4,70
Natal – 4,70
São Luís – 4,60
Joao Pessoa – 4,60
Recife – 4,60
Belém – 4,60
Porto Alegre – 4,60
Aracaju – 4,40
Maceió – 4,40
Macapá – 4,40
Séries finais
Palmas – 5,60
Curitiba – 5,30
Teresina – 5,20
Campo Grande – 5,00
Florianópolis – 4,90
Belo Horizonte – 4,80
Goiânia – 4,60
Macapá – 4,60
Cuiabá – 4,50
Fortaleza – 4,40
Manaus – 4,30
Vitoria – 4,30
São Paulo – 4,30
Rio de Janeiro – 4,30
Belém – 4,00
São Luís – 3,90
Porto Alegre – 3,80
João Pessoa – 3,80
Natal – 3,60
Recife – 3,50
Porto Velho – 3,50
Salvador – 3,40
Maceió – 3,40
Aracaju – 3,40