Com a caneta atrás da orelha e o boné branco combinando com o uniforme, Daniel Josué Abreu de Souza se desdobra para vender seu peixe em um dos lugares onde mais circula gente em Porto Alegre.
Faz 34 anos que o vendedor de bacalhau trabalha no Mercado Público. E olha que tem só 43 de idade.
– Ele é praticamente um patrimônio do Mercado Público – comenta o filho Róger de Souza, 20 anos, que também trabalha no local.
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Daniel já frequentava o Mercado aos oito anos. Filho de ferreiro e de dona de casa, ia com dois de seus oito irmãos da Vila Safira, onde moravam, ao Centro para pedir dinheiro e comida. Ganhavam uns pães do padeiro e garimpavam retalhos de frios pelas bancas do prédio. Também vendeu bala, picolé e foi engraxate. E foi engraxando o sapato do dono de uma banca que, aos nove, pediu um emprego.
– Tem uma vaga aí, tio?
– Vem aí amanhã, guri.
No dia seguinte, Daniel pegou o primeiro ônibus para o Centro, às 5h10min, vestindo chinelo de dedo porque nem tênis tinha. Tão baixinho que precisava subir em uma caixa de ameixa para alcançar a balança de pesar a mercadoria, ele se deslumbrava com o tamanho do mercado.
– Um dia fui no banheiro e me perdi. Levei um tempão pra me encontrar – diverte-se.
Justino Ligabue, 60 anos, quem ensinou o ofício a Daniel, só elogia o ex-colega, que recebeu o apelido de Cebolinha quando cortou o cabelo na tentativa de se livrar dos piolhos.
– Era muito esperto e queria aprender – recorda Justino. – É um guri que... Ou melhor, agora é um homem nota 10.
Daniel trabalhou 24 anos na banca 26. Recebeu uma proposta de emprego há 10 anos, e desde então está a alguns metros ao lado, na Banca do Holandês. Seu mantra como vendedor é tratar todos os clientes com igualdade. Ainda mais em um ambiente que, como ele gosta de lembrar, vende cachaça de R$ 2 e também champanhe de R$ 2 mil.
– Atendo a todos com o mesmo carinho – garante.
Questionado sobre as técnicas de abordagem, diz que não deixa de dar "bom dia". Ele jura que já conseguiu vender apenas por ter cumprimentado alguém. Se o cliente tiver tempo para um dedo de prosa, então, Daniel não decepciona. O publicitário Leonardo Bach, 30 anos, atesta:
– De vez em quando, não venho comprar na banca, mas paro para conversar. Ele tem um astral bom.
Se alguém testa seus conhecimentos sobre bacalhau, Daniel anima-se em mostrar o que aprendeu lendo sobre o assunto e ouvindo os clientes com atenção:
– O bacalhau mais famoso é o Gadus morhua, o principal da linha norueguesa. Só que ele tem três primos, da Noruega também. Tem o Brosmius brosme, que é conhecido no Brasil como Zarbo, o Pollachius virens, que é o Saithe, e o Molva molva, que é o Ling.
Salientando que já fez "milhares de amigos" ali, o vendedor de bacalhau vê o Mercado Público como uma casa. Em parte porque levou metade da casa para lá: a filha trabalha na banca 19, o filho, na 38, o genro e um irmão na banca 12, outros dois irmãos na 26. Ele diz que o trabalho estruturou sua família:
– Eu fui de uma vida paupérrima a uma vida confortável. Não faltou nada para os meus cinco filhos, mas eu tento não deixá-los esquecer do que eu passei.
Quando dá 19h30min, e o Mercado fecha suas portas, Daniel pega o ônibus de volta para a Vila Safira, onde mora até hoje. Se tiver sorte, sua esposa preparou bacalhau ao molho branco para o jantar.