Se a cidade é feita de pessoas, tijolinhos da vida urbana são o que não falta em Porto Alegre: mais de 1,4 milhão erguem a cidade que completa 245 anos no próximo dia 26. Em 2016, inspirada no projeto Humans of New York, Zero Hora foi em busca da principal matéria-prima da capital gaúcha e contou a história de cem habitantes, de origens e sonhos diversos, que compartilham os bairros e vias da cidade bicentenária. Um ano depois, recontamos cinco histórias de pessoas de Porto Alegre para saber o que mudou em suas vidas e em sua relação com a Capital.
Uma promoção de emprego, uma alternativa para melhorar a vida de um grupo de ciclistas, o retorno ao Cisne Branco e o fortalecimento da prática de uma ação social foram alguns dos movimentos que marcaram o último ano na vida dos entrevistados de 2016. Já em relação à cidade, uma preocupação em comum marcou as conversas com os cinco moradores de Porto Alegre que participaram da reportagem: o aumento da violência e a sensação de insegurança, na visão dos entrevistados, são o principal desafio a ser superado pela Capital nos próximos anos. Que sejam de mais vida, para a cidade e para as pessoas de Porto Alegre.
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Parceria para fortalecer a cultura da bike
Utilizar a bicicleta como meio de transporte era meta recente na vida do analista de sistemas Mathias Hartmann quando falou à ZH, em março de 2016. Ao longo dos meses que se seguiram, o plano se concretizou e foi além: mais do que um jeito de se deslocar pela cidade, a bike virou filosofia de vida.
– Eu vejo que ainda tem muitas dificuldades para quem é ciclista. Mas a gente tem de brigar por esse espaço. A cultura da bicicleta pode ajudar a desafogar o trânsito na cidade – avalia.
Morador do extremo sul de Porto Alegre, ele reuniu-se com parceiros de moradia para viabilizar o uso da bicicleta a partir da região central da cidade, já que o local onde vivem fica a 40 quilômetros do Centro. Tomaram uma iniciativa inusitada: entre 10 amigos, alugaram a vaga de um carro em um estacionamento na Cidade Baixa e instalaram um bicicletário para que todos pudessem guardar as magrelas em segurança – apesar disso, um furto sumiu com duas delas em março.
– Dez bicicletas a mais e um carro a menos – sorri.
Enquanto trabalhou perto da Avenida Sertório, pegava carona até o estacionamento para seguir de bike até a antiga companhia, um trajeto diário de 15 quilômetros. Fortalecer os laços com a bicicleta trouxe autonomia, mas também expôs os problemas do trânsito na Capital.
– No fim, a gente aprende a se locomover, criar coragem e vê que dá para ir a qualquer canto. Mas ainda tem muita gente que quer andar de bike e não faz isso porque tem medo. O uso da bicicleta precisa ser mais estimulado – diz.
Corridas migraram para o Parcão
Foi para o bairro Moinhos de Vento que a vida levou a advogada Estefania Heguaburu, 30 anos, em 2016. Moradora até então da Rua Vicente da Fontoura, ela resolveu se fixar nas redondezas do Parcão depois de receber uma promoção no trabalho, também localizado no bairro.
– Eu morava com meu pai, mas, depois da mudança no trabalho, resolvi alugar um lugar sozinha. Achei um apartamento na Rua Castro Alves e estou feliz. Moro em um bairro legal, vou trabalhar caminhando. É muita qualidade de vida – avalia.
Fã de esportes, logo encontrou uma academia "entre a casa e o trabalho" para manter a rotina de exercícios. Com a mudança e o aumento da sensação de insegurança, as corridas mais longas pela cidade também se restringiram ao Parque Moinhos de Vento. A orla do Guaíba, local destacado como um de seus preferidos na Capital à época em que conversou com a reportagem, virou programa cada vez mais esporádico.
– Gosto mais de me deslocar de um ponto a outro, mas, com essa onda de violência, está mais complicado. Acabei deixando de fazer, preferindo ficar na zona de conforto. A orla está mais legal, mais aberta, apesar de tudo. Mas agora vou só com meu irmão, aos finais de semana – conta.
Aperto nas finanças e preocupação com segurança
Gerente de uma joalheria em um shopping de Porto Alegre, Victor Hugo Agarrallua leva uma vida tranquila: trabalha no ramo que ambicionava desde a juventude, vive em um bom bairro, com a esposa e dois dos quatro filhos, e aprecia a diversidade de opções de coisas para fazer na cidade. A paisagem que observou no último ano, no entanto, foi perturbadora.
– Teve uma mudança na economia que se refletiu bastante nos negócios. Aqui no shopping mesmo, muitas lojas fecharam. Também teve uma piora na questão da segurança. Foi assustador tudo o que aconteceu, a quantidade de assaltos e assassinatos – comenta.
Aos 61 anos recém-completados, o homem de gestos elegantes e conversa fácil não chegou a ser afetado pela crise econômica. Apesar de ver reduzirem as comissões de vendas, a experiência pregressa o fez criar reservas para enfrentar o período mais escasso sem sobressaltos. Para evitar situações de risco em função da violência, começou a ser mais criterioso nos programas com a família.
Destacada na reportagem publicada em 2016 – que lhe rendeu dias de celebridade no shopping –, sua relação apaixonada com o trabalho, que continua exercendo com o mesmo esmero, é o que segue imutável. Ainda é motivado pela aura de refinamento e elegância criada em torno das joias, e aprecia a possibilidade de criar relações próximas com os clientes, galgadas na confiança. Mas prefere apelar a um ditado popular para explicar o que o torna incansável:
– Eu costumo dizer que esse ramo é como uma cachaça. Quando se começa, não se consegue mais parar – diz.
Capoeira para mudar a realidade
A persistência é o principal antídoto do professor de educação física Paulo Lara Perkou contra a violência. Instrutor de capoeira em espaços educacionais de Porto Alegre, ele trabalha voluntariamente, há mais de 10 anos, com crianças da Vila Dique, na zona norte da Capital. Seu objetivo é disseminar os valores da capoeira para que os jovens se interessem em buscar novas perspectivas de vida.
– É uma construção do dia a dia. Eu continuo nela, apesar das dificuldades, porque sou esperançoso e otimista. Acredito que a disciplina, a educação, o respeito e a solidariedade tornam a cidade menos violenta e mais humana – opina o educador, que lamenta o avanço da violência na Capital.
A iniciativa de levar a prática que conheceu nos anos 1980 para a comunidade surgiu durante a infância do filho, hoje com 15 anos. Paulo queria realizar atividades que contribuíssem para melhorar a cidade em que o garoto cresceria. O projeto, que passou por escolas, hoje ocorre nas ruas da Dique, aos sábados.
Levar os conhecimentos sobre uma cultura ancestral a crianças carentes provocou uma mudança de olhar sobre a própria atividade. Se décadas atrás acreditava que a capoeira servia apenas como luta, hoje acredita que os conhecimentos históricos e sociais envolvidos importam mais.
– Encontrei na capoeira uma defesa, mas, com o passar do tempo, as coisas foram mudando. Não vou trazer a todos as oportunidades que meu filho pode ter, mas dou a possibilidade de essas pessoas serem mais alegres, cultivarem sonhos. Todo mundo quer uma vida melhor.
Volta ao Cisne Branco com frio na barriga
Tinha a ver com o vento o frio na barriga sentido por Kátia Ellis Schmitt Zanin quando entrou no Cisne Branco com o marido e dois casais de amigos. Mas não exatamente com o ar gelado que soprava naquela noite, resquícios do inverno em pleno outubro. Passageira do barco dois dias antes do temporal que o virou do avesso em janeiro de 2016, ela retornava ao local para uma festa, semanas após sua reinauguração, entre um misto de excitação e medo.
– O pessoal estava com um pouco de receio em virtude do ocorrido, e eu também. Estava frio, um vento bem forte. Um show que seria no deck acabou sendo realizado embaixo, na parte interna – lembra.
Os sentimentos divididos logo deram lugar ao embalo da festa anos 1980 que motivou o passeio do grupo. Fã da embarcação, a porto-alegrense ainda pôde vivenciar uma experiência diferente da primeira vez em que havia andado no Cisne Branco, em 2016: curtiu o passeio à noite, dançando, na companhia dos amigos.
A engenheira civil aprovou as mudanças na estética do barco, que passou por uma reforma durante meses e voltou a funcionar em outubro do ano passado. Já a estreia na embarcação mais famosa da Capital, naquele janeiro, segue imbatível.
– Era um domingo, e fomos até lá conhecer, fazer um happy hour. Tinha uma banda cover dos Stones. Foi de tardezinha e deu para ver o pôr do sol. Mas ir à festa valeu igual. Sempre que der, eu vou ao Cisne Branco – diz.