Apesar do avanço tímido das cidades gaúchas banhadas pelos rios Gravataí, Sinos e Caí no tratamento de esgoto, os investimentos feitos em Porto Alegre por meio do Programa Integrado Socioambiental (Pisa) podem ser considerados um exemplo positivo. Desde a inauguração do sistema, em 11 de abril de 2014, a Capital gaúcha deixou de lançar no Lago Guaíba 76,5 bilhões de litros de esgoto sem tratamento. É como se mais de 20,6 mil piscinas olímpicas lotadas de carga poluidora fossem tratadas e somente água quase potável fosse lançada no manancial.
O tratamento de efluentes subiu de 18% para 66%, mas com capacidade instalada para tratar 86%. O levantamento foi feito pelo Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae) a pedido de Rádio Gaúcha.
Os primeiros projetos do Pisa nasceram ainda em 1998, quando Raul Pont (PT) era prefeito. De lá para cá, adaptações precisaram ser feitas. Os números do programa impressionam: foram 2.115 dias de obras, entre fevereiro de 2008 e dezembro de 2013; 1.170 trabalhadores diretos e mais 2.630 indiretos estiveram envolvidos; 42 quilômetros de canos foram instalados para levar o esgoto das residências até as estações de tratamento; o valor total investido foi de R$ 988 milhões.
Coordenador do Pisa, o engenheiro civil Valdir Flores trabalha há 40 anos no Dmae. Lembra que foram 25 contratos de obras, que incluíram redes coletoras, tubulações maiores e estações de elevação, de bombeamento e de tratamento.
“Porto Alegre, ao longo da sua história, sempre despejou os seus esgotos na orla do Guaíba. A medida que esse projeto se propunha a tratar 50% dos esgotos produzidos na cidade de Porto Alegre, ele vai impactar diretamente na qualidade da água do Guaíba”.
Em 2014, logo após a inauguração do Pisa, um termo de ajustamento de conduta precisou ser firmado entre prefeitura, Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) e Ministério Público Estadual para começar tratando 500 litros por segundo ou 40 m3 por dia durante seis meses. A promotora Anelise Steigleder afirma que as discussões foram feitas para evitar danos ambientais e permitir o funcionamento adequado do Pisa.
“O Ministério Público atuou neste caso muito no sentido de mediar um conflito entre a Fepam e o Dmae naquela época. A licença ambiental do Dmae previa um determinado comprimento do emissário subaquático de 2,6 mil metros e na época o departamento teve uma oportunidade de aperfeiçoar a tecnologia para o tratamento que permitiria implantar um emissário subaquático com mil metros de comprimento menor”.
Segundo a promotora, como a Fepam demorou a responder à consulta, o Dmae decidiu começar a operar o sistema da forma como estava na época, descumprindo a licença ambiental que possuía. Como o custo era alto para aumentar o emissário que lançaria o esgoto no Guaíba, o MP atuou mediando o conflito.
“A solução que foi encontrada, que foi sacramentada num termo de Ajustamento de Conduta, foi que se elaborasse e se criasse um painel de especialistas”.
Anelise recorda que os testes eram necessários e por isso a operação começou, mas de forma ainda mais controlada.
“Em que o Dmae iniciou aos pouquinhos, com uma vazão reduzida, monitorando amplamente a qualidade de água do Guaíba. Os vários pontos que pudessem ter interface com o tema. E houve uma conclusão que 1.600 metros de emissário subaquático era suficiente para evitar uma poluição agregada do Guaíba”.
Começo tardio
O professor Carlos André Bulhões, vice-diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, lamenta que o Pisa tenha se tornado realidade somente 30 anos depois do início das suas discussões.
“É relevante, agrega qualidade de vida à cidade de Porto Alegre e, sem sombra de dúvida, cada R$ 1 aplicado em saneamento rende uma economia de pelo menos R$ 4 no Sistema Único de Saúde”.
Os dados apresentados pelo professor são do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do governo federal. Bulhões ressalta que tratar esgoto é uma questão de saúde pública e uma decisão política.
“Se isso é prioritário, se isso tem recurso, que fosse uma prioridade de natureza política tratar esgoto. Osvaldo Cruz, em 1907, erradicou o Aedes aegypti na cidade do Rio de Janeiro com medidas profiláticas de saneamento básico. Ano que vem, 2017, 100 anos depois, pena que o Aedes Aegypti está tão vivo como nunca e a gente esqueceu de medidas simples”.
Melhoria na qualidade da água do Guaíba
O presidente do Comitê do Lago Guaíba, Manuel Salvaterra, afirma que a qualidade do manancial tem apresentado melhoras em alguns trechos desde a inauguração do Pisa. Segundo ele, isso se deve principalmente devido ao aumento da capacidade de tratamento da Estação Serraria.
Salvaterra reforça o que foi dito pelo professor Carlos André Bulhões sobre os prejuízos do lançamento do esgoto nos rios.
“Isso aí vai contaminar o lago, vai consumir o oxigênio dissolvido que é essencial para a vida no lago. A gente sabe que a maioria das doenças está vinculada à poluição hídrica”.
O atual diretor-presidente da Companhia Rio-grandense de Saneamento (Corsan) foi diretor-geral do Dmae por dez anos. Flávio Presser foi responsável por colocar em operação ao Pisa. Segundo ele, quando chegou à prefeitura, o projeto estava parado por falta de viabilidade de contrair empréstimos em razão de problemas de caixa. Presser recorda que foi com o então prefeito José Fogaça (PMDB) no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), nos Estados Unidos, buscar empréstimo. Para conseguir os valores, precisaria mudar o projeto em relação aos reassentamentos necessários para fazer a obra.
“Escolhemos três ou quatro áreas, todas elas na região sul. As pessoas poderiam escolher permanecer nesse plano de reassentamento ou poderiam buscar comprar um imóvel, através do chamado bônus moradia”.
As maiores obras
A Estação de Bombeamento do Cristal e a Estação de Tratamento de Esgoto da Serraria foram as duas maiores obras do Pisa. A reportagem visitou esses locais para conhecer melhor a operação.
Estação de Bombeamento Cristal. Foto: Mauro Vieira/Agência RBS
Em cima de uma das três torres da Estação de Bombeamento Cristal, o gerente de operações do Dmae Flávio da Cunha Machado explicou que a estação recebe efluentes de outras três unidades menores.
“Daqui nós mandamos, através de uma tubulação de 1,6 mil metros que parte por uma linha subfluvial até a ETE Serraria”.
O esgoto que chega à estação Cristal é bombeado por cerca de 12 km até a Estação de Tratamento de Esgoto da Serraria.
“O esgoto é recoletado através de gravidade. Então para a gente conseguir levar esse esgoto em distâncias maiores, é necessário que exista uma estação elevatória. E com isso a gente consegue fazer com que esse esgoto, que é coletado por bacias, chegue até o tratamento final”.
Cinco motores são responsáveis pelo bombeamento do esgoto na estação Cristal até o próximo passo, que é o tratamento.
“Essa estação tem uma capacidade prevista total para 3.600 litros por segundo. Atualmente nós estamos enviando em média na faixa de 1.600 l/s”.
Quem passa pela Avenida Diário de Notícias, na zona sul de Porto Alegre, percebe as imponentes torres construídas pelo DMAE. São duas de 31 metros e uma de 14 metros. As estruturas têm capacidade para armazenar esgoto suficiente para preencher a rede coletora em caso de paralisação do bombeamento.
Estação de Tratamento Serraria. Foto: Omar Freitas/Agência RBS
Apesar da importância da estação Cristal no Programa Integrado Socioambiental, a obra fundamental para o aumento considerável do tratamento de efluentes na capital gaúcha foi a Estação de Tratamento de Esgoto da Serraria. Confiram, então, as etapas de tratamento antes do esgoto que sai das residências ser despejado no Guaíba.
A técnica-coordenadora de tratamento de esgoto do Dmae na região Sul, Adriana Cecchi, afirma que o processo para tratamento do esgoto é complexo.
“O desarenador retira a areia com água e larga nos tanques, que são removidos só areia com classificador. E aí a água retorna ao processo para tratamento”.
Mais adiante, uma nova etapa do tratamento. A separação da parte sólida. Ou seja, tudo o que é maior é retido por grades.
As tubulações gigantes chamam a atenção na ETE Serraria. Cada uma vêm de uma estação de bombeamento. A maior é a da estação de bombeamento que fica no Cristal.
Grandes tubulações de esgoto. Foto: Eduardo Matos/Rádio Gaúcha
Durante a visita da reportagem, Adriana Cecchin deu ideia da quantidade de esgoto que chegava à estação. Eram 1.693 litros por segundo entrando no ponto.
Depois do “desarenador”, uma grade separa os objetos maiores. Logo após, vem a separação da gordura.
“Essa unidade faz parte do tratamento preliminar. A preparação para o esgoto ser tratado, onde a gente remove a gordura aqui no meio. E destina lá embaixo, nas caixas”, destaca Adriana.
Grandes “piscinas” cobertas e abertas finalizam o processo. Na última etapa do tratamento antes do lançamento no Guaíba, o cheiro forte de esgoto já não existe mais.
Piscina de tratamento do esgoto. Foto: Eduardo Matos/Rádio Gaúcha
Até mesmo o lodo que sobra, é reaproveitado. Desde a inauguração da ETE Serraria, cerca de 6 mil toneladas de lodo foram enviadas para tratamento em Minas do Leão.
“Essa é a parte de desidratação de lodo. Depois de fazer o tratamento, nós separamos em fase líquida, que é o efluente tratado, e o sólido em excesso, esse lodo que fez a decomposição da matéria, ele vai aumentando cada vez mais. Hoje, nós estamos tirando 25 toneladas de lodo já desidratado”, explica Adriana.
A especialista explica que o material pode ser reaproveitado, inclusive para questões energéticas”. A gordura também é reaproveitada, sendo enviada para tratamento em Nova Santa Rita. Desde a inauguração do Pisa, há dois anos e meio, cerca de 700 toneladas tiveram o destino adequado.
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Apesar da estrutura gigantesca montada ao longo de anos e do grande investimento para aumentar o tratamento de esgoto na capital, ainda tem gente que insiste em não conectar suas residências à rede e lançar carga poluidora direto no Guaíba. Hoje à noite nos sites de Gaúcha e ZH.