Tommaso Buscetta (1928–2000) nunca se preocupou com os trocadilhos que os brasileiros faziam com seu sobrenome (a propósito: pronuncia-se "bucheta"). O italiano amava demais o Brasil para se irritar – gostava da malícia, do gingado, do descompromisso, da irresponsabilidade, do dolce far niente dos cariocas, tão diferente da sisudez europeia. E tão contrastante com a omertà, o rígido código de obediência e silêncio imposto pela Cosa Nostra a mafiosos como ele.
Não por acaso, escolheu o Brasil como lar por três vezes. Mesmo tendo sido preso duas vezes. Mesmo sendo torturado pelo temido Dops (polícia política), junto com sua mulher. Mesmo tendo perdido dinheiro e sossego, em certas épocas.
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Buscetta, que se tornou um dos mafiosos mais notórios de todos os tempos por ter virado, nos anos 1980, um dos pentiti (delatores dispostos a confessar seus pecados e o dos sócios), ganha agora uma biografia definitiva. O autor, o jornalista gaúcho (e descendente de italianos) Leandro Demori, 35 anos, é um especialista em investigação por computador (RAC), disciplina que ministra em cursos na PUCRS. Isso o ajudou a encontrar documentos confidenciais do FBI, da Interpol, da polícia italiana. Mas Demori não se limitou ao universo digital. Viveu um período na Itália e devassou, na Sicília, arquivos policiais.
O resultado é Cosa Nostra no Brasil – a história do mafioso que derrubou um império (Companhia das Letras, 274 páginas, R$ 49,90), com lançamento marcado para o dia 1º de dezembro em Porto Alegre, às 19h, na Livraria Cultura (Shopping Bourbon Country). O livro é uma imersão na sangrenta história da máfia italiana, desde as sociedades secretas que a antecederam na Idade Média. Retrata as batalhas pelo controle do pizzo (propina), pago por qualquer comerciante ou industrial no Sul da Itália que desejasse progredir – ou simplesmente viver. Relata a luta constante dos mafiosos contra o Estado, policiais, promotores, juízes. Expõe a divisão dos clãs no debate sobre fontes de renda "históricas" (contrabando, extorsão, prostituição) ou "modernas" (e polêmicas, como o tráfico de drogas). Buscetta é o fio condutor, uma espécie de príncipe que migra entre América e Europa, sempre a abrir caminhos e a fazer alianças, um vanguardista num universo de conservadores "homens de honra". Um playboy com grande coração, a sustentar várias famílias e uma legião de filhos.
Tudo começou a ruir quando caiu nas garras de um duro juiz italiano. É aí que sua vida dá uma guinada definitiva. Quer saber mais? Leia o livro, que mostra, além de tudo, como o Brasil se tornou paraíso dos lavadores de dinheiro, tão em voga nesses tempos de Operação Lava-Jato e corrupção sem fim.
ENTREVISTA: LEANDRO DEMORI
"O negócio das máfias continua o mesmo"
Por que fazer um livro sobre a máfia?
Meu pai é o maior leitor que eu já conheci. Ele se gaba de ter começado a ver filmes porque leu "todos os livros que existem". Claro que é um exagero, mas acho que ele leu quase todos (risos). A máfia é uma junção da minha infância, quando comecei a me formar como leitor, com o meu trabalho de jornalista.
E por que Buscetta?
Conhecia sua história desde os anos 1990. Quando fui à Itália, em 2008, fiz especialização em jornalismo investigativo que tratava de sistemas criminais mafiosos. Estudamos Cosa Nostra, Camorra e 'Ndrangheta. Foi aí que me interessei mais pela vida do Tommaso. Vi que ele não tinha uma biografia e que sua vida no Brasil era ainda desconhecida. Sabia-se o que ele contava, e claro que ele não contava tudo. Quando liberaram os arquivos da repressão militar, fui a São Paulo e ao Rio e também requeri os arquivos da Biblioteca Nacional. Tive acesso aos inquéritos policiais da prisão do Tommaso nos anos 1970 e 1980 no Brasil. Eram detalhados, traziam toda a operação de tráfico de heroína que ele empreendeu por aqui, com uma gangue de italianos e, sobretudo, franceses. Graças à descoberta desses arquivos é que o livro passou a existir na minha cabeça.
O que mudou na máfia do tempo de Buscetta para cá?
Mudou tudo e nada. A Cosa Nostra perdeu terreno, apesar de ainda estar viva. A principal máfia italiana hoje é a 'Ndrangheta, calabresa. Outras máfias entraram no jogo depois da globalização: russos, turcos, nigerianos, chineses. O crime é hoje mais pulverizado e existe menos concentração de poder. Mas o negócio continua o mesmo: onde os Estados fazem leis para proibir algum tipo de comércio, as máfias entram com o tráfico, de drogas a seres humanos. Elas são parte da economia, e o giro de dinheiro empreendido por elas afeta a todos nós.
Após os livros sobre a Camorra, Roberto Saviano teve de se mudar e vive ameaçado pela máfia napolitana. Teme algo do gênero?
Não. Nem penso nisso. Conversei com muita gente para escrever esse livro, é natural que algumas delas tenham entendimentos diferentes do meu em relação à história. Tommaso, por exemplo, jamais admitiu ter traficado sequer um grama de droga em toda a sua vida, tese que contesto no livro. Se houver uma briga de versões, tudo bem. Não acho que vai passar disso.